
12.12: O Dia
Por uma dessas eventualidades que talvez nem a História poderá explicar, o longa coreano “12.12: O Dia” está sendo lançado no Brasil dentro de um período de comoção nacional por Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. Essa simultaneidade nos é absolutamente oportuna, embora se trate de dois filmes produzidos antipodamente, num sentido geográfico mesmo, o que significa que todos os quatro hemisférios da Terra os separam. Mas eles mostram que, nascidas no Brasil ou na Coreia do Sul, as pessoas são as mesmas em sua ganância pelo poder e pelo dinheiro.
Ainda assim, eu realmente não acreditava que “12.12: O Dia”, a aposta coreana para o Oscar 2025, um dia seria lançado no Brasil. A razão disso é muito simples. O filme é um escandaloso passo-a-passo da consecução de um bem-sucedido golpe de Estado no estilo clássico (daqui a pouco falo mais disso). Então, nesse sentido, abstraídas as distâncias geográficas e temporais, “12.12: O Dia”, seria um prequel. Melhor dizendo, seria o marco zero para o desencadeamento dos fatos narrados em Ainda Estou Aqui. Correndo o risco de cair no trocadilho barato, posso dizer que, em “12.12: O Dia”, está tudo lá.
Além disso, “12.12: O Dia” também se comunica com o presente brasileiro, mais especificamente com nossa História recente: a recente tentativa de golpe de Estado que sofremos e todos os elementos que as investigações posteriores ajudaram a desvendar.
“12:12: O Dia” completa a cartela do bingo dos golpes militares de Estado
Todos esses fatores, articulados às diferenças acentuadas entre a Coreia da década de setenta do século 20 e o Brasil do século 21, tornam “12.12: O Dia” um filme oportuno ao debate político brasileiro. Com efeito, neste texto aponto os temas mais relevantes, a meu ver, desse debate. Igualmente, também discuto algumas soluções estéticas e dramáticas do diretor e também roteirista Kim Sung-Soo para contar sua versão dessa ferida na já tão sofrida História coreana.
No livro Como as democracias morrem, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt traçam o desenho cronológico e factual de como o fascismo agora assume o poder nas nações do mundo. Antes, havia duas formas diferentes de instauração das ditaduras. Uma delas é golpe de Estado clássico, com os tanques na rua e as forças armadas tomando e fechando na marra os poderes instituídos. A outra consiste na lenta desidratação das instituições democráticas, até o momento em que as pessoas se dão conta de que não têm mais nem direitos nem liberdade nenhuma.
No Brasil, em 8 de janeiro de 2023, tentou-se o golpe clássico. A saber: montou-se uma desculpa esfarrapada, baseada em fake news, de fraude nas urnas, cujo combate legitimaria a tomada do poder pelos militares. Contudo, em outros países, o processo em fogo lento tem sido muito mais bem-sucedido. É o que se vê por exemplo na Hungria, que ao longo dos últimos anos tem testemunhado o esfacelamento disseminado de todas as formas de independência institucional e de poderes que caracterizam os regimes democráticos.
Em “12:12: O Dia”, lá é como aqui
Há diversos pontos em comum entre o que vemos na tela e nosso conhecimento público da História recente do Brasil. Assim como aqui, lá havia um grupo seleto de militares, quase uma seita, chamado Hanahoe. Seus membros se julgavam os escolhidos para ocupar o governo e “consertar” o país. Ou seja, impor a qualquer preço sua visão de mundo e de Estado. E desprezavam solenemente todo mundo que não era eles, inclusive os outros militares. Tomar o poder nada mais era do que estabelecer a ordem que imaginavam que o país precisava. Perceberam alguma semelhança com o Brasil?
Igualmente, lá também havia um mínimo de prurido moral que levava os Hanahoe a inventar alguma desculpa esfarrapada para colocar os tanques na rua. Iriam colocar de todo modo, mas desejavam que a opinião pública estivesse com eles, referendando suas certezas de serem os escolhidos por sei lá quem para guiar a nação.
No caso de “12.12: O Dia”, essa desculpa dizia respeito ao atentado que matou o ditador Park Chung-Hee em 26 de outubro de 1979, pouco antes dos acontecimentos do filme. E o bode expiatório era Jeong Sang-Hoo (Lee Sung-Min), membro do governo presente no recinto em que o ditador foi morto, e supostamente tido como cúmplice no atentado, algo que os Hanahoe alegavam querer provar. Tudo bravata.
Uma terceira semelhança é a existência de grupos dentro das Forças Armadas agindo diferentemente em relação ao golpe iminente. Entre esses grupos, encontram-se os que se omitiram diante do que consideravam inevitável. Sabiam que de alguma maneira sairiam incólumes depois da tsunami. São bastante espertos nisso: para os militares, à exceção dos que resistissem bravamente (no Brasil, nenhum deles…), golpes de Estado sempre representam mais poder e mais dinheiro. Para que resistir, então, se isso lhes pode custar o pescoço?
Mas “12.12 O Dia” também apresenta diferenças
Contudo, a comparação entre a tentativa de golpe no Brasil em 2023 e os fatos narrados em “12.12: O Dia” revela pelo menos duas distinções. Uma diferença essencial é a de que lá realmente houve um golpe, e o grupo golpista tomou o poder. Ocupou-o até 1987, quando houve as primeiras eleições diretas para presidente no país. Antes disso, Park Chung-Hee havia governado ditatorialmente a Coreia por 18 anos. Isso significa que, em 1979, os Hanahoe tomaram o poder em uma nação quase sem nenhuma experiência democrática, e cujas instituições se encontravam num tal estado de fraqueza, que se tornaram incapazes de resistir a qualquer ataque, vindo de onde viesse.
No Brasil, diferentemente, após o fim da ditadura militar, temos votado para eleger nossos representantes executivos e legislativos desde 1989. Isso foi tempo suficiente para a consolidação de uma Constituição soberana e o fortalecimento dos poderes independentes e das organizações da sociedade civil. Nessas condições, seria em princípio mais difícil a um grupo golpista tanto conseguir total adesão social para seu intento, quanto convencer um significativo número de instituições da sociedade civil da necessidade de sua intervenção.
E foi o que aconteceu conosco: a ação golpista resultou enfraquecida em si e foi rapidamente debelada. Como bem disse Chun Doo-Gwang (Hwang Jung-Min), o líder dos golpistas coreanos, “se falharmos, será traição; se vencermos, será revolução”. Melhor dizendo: trair a pátria com sucesso é revolução, mas, em essência, é tudo traição mesmo.
O jeito coreano de contar histórias enfraquece a narrativa de “12.12: O dia”
Contudo, talvez a diferença principal entre o que vemos em “12.12: O Dia” e a realidade brasileira, e mundial também, é o maniqueísmo que muitas vezes enfraquece muitas produções coreanas. Por aqui, já sabemos que ser um herói é privilégio para poucos. Muitos dos que disseram ter defendido a pátria em 2022 na verdade apenas agiram por pragmatismo e oportunismo, omitindo-se diante da obrigação de prender imediatamente quem se aproximava com a conversa de golpe.
O heroico resistente General Lee Tae-Shin (Jung Woo-Sung), diferentemente de muitos outros personagens do filme, não encontra contraparte nos fatos históricos. Ou seja, não existiu. Foi necessário para compor a ação ininterrupta que torna “12.12: O Dia” um filme eletrizante, que nos mantém vidrados por 140 minutos. Mas, por outro lado, para esse feito foi necessária a composição de um antagonismo fictício entre personagens sem nuances, sem ambiguidades que os tornasse realmente interessantes.
Nesse sentido, Jung Woo-Sung se sai melhor ao construir expressivamente o pânico crescente do personagem diante da gravidade sem trégua do golpe em curso, e cada vez mais sozinho para lidar com a ameaça gigantesca e fatal. Conseguimos até torcer por ele. O pior fica mesmo para Hwang Jung-Mim, que teve em mãos a possibilidade de tecer alguma complexidade por conta da possibilidade de seu personagem se tornar um real criminoso, mas em momento algum o medo ou a consciência ocupou algum espaço em sua interpretação. Assim, o resultado é uma figura caricata, debochada, algo impensável em alguém que lidera uma tentativa de golpe de Estado.
Um filme que se articula a outros
“12.12: O Dia”é sequência de outro filme histórico coreano recente. Trata-se de “O Homem ao Lado” (2020), de Woo Min-Ho. Nele, Lee Byung-Hun interpreta Kim Kyu-Pyeong, que matou o presidente Park Chung-Hee e desencadeou a sequência de acontecimentos narrados em “12.12: O Dia”. Vale a pena acompanhar como os coreanos propõem ficcionalmente sua visão sobre fatos que marcaram de forma fatal sua história recente.
Em “O Espião que Foi para o Norte” (2018), de Yoon Jong-Bin, também com Hwang Jung-Mim, retoma-se a tensão entre o sul e o norte coreanos. Muitos coreanos oportunistas usam a ameaça do vizinho como desculpa para perpetrar atos bem pouco republicanos e democráticos. Essa tensão está presente em “12.12: O Dia”. Além disso, também acabou como pivô da recente tentativa de golpe de estado pelo Presidente Yoon Suk Yeol, em 3 de dezembro de 2024. “O Espião que Foi para o Norte” mostra que, quando se trata de ganhar muito dinheiro e muito poder, as ideologias são as primeiras a ir para a lata do lixo.
Entre outros, esses três filmes nos motivam a buscar saber mais sobre a política na Ásia. Há razões importantes para esse conhecimento. A principal delas é o fato de que vermos com clareza cada vez maior que movimentos coletivos em um país influenciam fortemente vários outros, porque as redes de comunicação neutralizaram completamente as distâncias. E isso nos favorece a aprender muito até com quem está do outro lado do mundo.
Ficha Técnica

Direção: Kim Sung-Soo
Roteiro: Kim Sung-Soo, Hong In-Pyo, Lee Young-Jong
Edição: King Sang-Beom
Fotografia: Kim Jae-Kwang, Lee Mo-Gae
Trilha Sonora: Lee Jae-Jin
Elenco: Hwang Jung-Min, Jung Woo-Sung, Lee Sung-Min, Park Hae-Jon, Kim Sung Kyun, Kim Eui-Sung