7 prisioneiros
Última atualização: 15/11/2021
Neste texto, faço uma tentativa de representar minimamente em palavras a importância maiúscula de um filme como 7 prisioneiros, de Alexandre Moratto.
Porque 7 prisioneiros é uma daquelas obras de arte que desafiam o articulista com uma heterogeneidade que alcança nossos sentidos mais profundos, sobre coisas que sabemos porque estão escancaradas na nossa frente, e de maneira tão explícita, que há muito tempo elas passaram a dispensar as palavras.
Exibido entre outros inúmeros filmes durante a última Mostra São Paulo, 7 prisioneiros ainda assim se destacou junto ao público, mesmo sem ter recebido nenhum prêmio. Na Netflix, poderá ganhar merecido destaque, por impactar os brasileiros ao resumir de maneira brilhante, em apenas 9o minutos, o mais puro suco de Brasil, liquidificado durante os 521 anos em que a colonização e o seu gêmeo siamês, o racismo estrutural, têm encontrado aqui seu terreno mais fértil.
Pitorescamente, porém, é nas palavras de um dos seus personagens que 7 prisioneiros expõe com mais precisão o cenário amplo que descreve. “Olha o teu trabalho aí na cidade”, diz Luca (Rodrigo Santoro), o feitor de escravos, a seu cativo Mateus (Christian Malheiros), obrigado a coletar cobre de fios elétricos num ferro velho de São Paulo.
Em dois segundos, Luca resume mais de cinco séculos de um discurso justificativo do estupro, da diáspora e do genocídio que, na contemporaneidade, em talvez mesma proporção, o mundo ainda presencia, horrorizado: segundo a Revista Piauí, de 2010 a 2020, mais de 19 mil pessoas foram resgatadas de cativeiros onde trabalhavam em condições análogas à escravidão.
A naturalização da escravidão
É importante notar aqui que a frase de Luca é proferida sem nenhum traço de crueldade. Rodrigo Santoro é um ator inteligente o suficiente para atribuir a sua fala a completa naturalidade de quem acredita que o mundo é isso mesmo. Só pode ser edificado se passarmos a considerar que existem pessoas que valem mais e que valem menos, e pessoas que não valem nada. Pessoas que, como Luca, são pretas de tão pobres, e, como Mateus, são pobres de tão pretas.
O mais é uma exposição em camadas daquilo que inúmeros autores, ao longo dos últimos cem anos, têm identificado sobre este mundo de castas que construímos e consolidamos com notável competência. Mas aqui estou abrindo uma exceção. “Camada” é uma palavra que evito usar em meus textos, porque seu uso contínuo reduziu a zero seu impacto semântico.
Mas não tenho alternativa além de traduzir na imagem das camadas, ou melhor, das camadas tectônicas, o mundo materializado na relação entre Luca e Mateus. Relação essa que vai perdendo as fronteiras e se transformando em outras coisas, à medida que adquire outros contornos, com a desconstrução e reconfiguração dos personagens.
A cidade como diegese, e o capitalismo como extracampo
Como dimensão diegética, está “a cidade… com os punhos fechados na vida real”, como diz o poeta. A metrópole que não pode parar resulta da sobreposição das camadas tectônicas em que Luca e Mateus se movimentam. Em cada uma delas, eles assumem uma identidade específica. Ao apresentar Luca, senhor absoluto do ferro-velho em que Mateus e seus colegas trabalham para pagar dívidas de alimentação e estadia, Moratto, que assina o roteiro com Thayná Mantesso, já sugere que o chefe não é muito diferente de seus comandados, porque também mora ali, em condições não muito melhores.
Saindo os personagens daquela camada e adentrando um outro espaço da cidade, pertencente a outra classe social, Luca é que passa a ser o comandado. O deslocamento o revela trabalhando para gente mais poderosa, a quem serve com gratidão e fidelidade canina. No extracampo, bem sabemos, seu chefe, por sua vez, também será um comandado em organizações ainda mais poderosas. Evidentemente, a colonialidade, como estado de coisas, não se limita à cidade. Ela coloca o Brasil como periferia, e nossa classe dominante como sarjeta, lacaia e capacho do centro do capitalismo mundial.
Um estudo de personagem
Mas, se já sabemos que a história é essa, o que há de singular em 7 prisioneiros? Há, sobretudo, a proposta de estudo de personagem que nos permite observar Mateus ajustando-se a uma realidade imutável e aprendendo a jogar o jogo. Com isso, personifica o conceito de resistência que Michel Foucault propõe como alternativa de vida ao ser humano em condição de assujeitamento. “Resistir é […] o oposto de reagir. Quando reagimos damos a resposta àquilo que o poder quer de nós; mas quando resistimos criamos possibilidades de existência a partir de composições de forças inéditas. Resistir é, neste aspecto, sinônimo de criar.”
Nesse sentido, perceba-se novamente o contraste entre o destino de Mateus e o dos outros que permanecem nas mesmas condições abjetas em que foram colocados logo que chegaram a São Paulo. Luca os trata como coisas, como mais uma mercadoria à vista no comércio paulista. Eles chegam ali de “avião, ônibus, navio… como tudo que a gente compra”. Mas Mateus logo se alça a um status especial. Faz isso por inteligência e esperteza, mas também por reconhecer a impossibilidade de saída. Isso lhe permitiu divisar onde poderia individualizar-se.
Mas Foucault não é o único autor que lembramos em 7 prisioneiros. Numa perspectiva mais extensa, o filósofo Achille Mbembe constrói um pensamento capaz de dar conta não apenas da situação desgraçada em que Mateus e seus colegas se colocaram, mas de também incluir Luca, e sua vida também desgraçada. É o devir negro do mundo: a complexa dinâmica da escravização de pessoas vindas da África por quase 400 anos se replica no presente em diversas instâncias da vida social e, sobretudo, econômica.
O último estágio da opressão é repetir o discurso do opressor
A riqueza de um filme como 7 prisioneiros também está em sua capacidade de traçar as linhas do futuro de seus personagens, a partir de suas escolhas diante das situações em que se colocam ou são colocados. Pierre Bourdieu é quem apresenta as possibilidades de futuro de Mateus, já que o de Luca está dado. Repetirá Mateus o discurso de seu opressor? Aceitará, em linguagem e sentimento, a estrutura de mundo que carrega aos pés como uma bola de ferro? Ou conseguirá manter em seu coração, nem que seja apenas como uma centelha, a juventude de sonhos que o trouxe a São Paulo?
A brilhante e caleidoscópica atuação de Christian Malheiros nada tem a dever ao experiente Santoro. Nos coloca na incerteza em relação a que tipo de pessoa Mateus poderá ser no fim do filme em diante. Tornar-se-á será sujeito, ou envelhecerá assujeitado? De todo modo, o trabalho de Malheiros nos inspira a torcer pelo personagem. Esperamos que ele, assim como todos os Mateus reais, um dia possam voltar a ser guiados por seus sonhos.
O Brasil não é para principiantes
Assim sendo, 7 prisioneiros é um dos mais relevantes documentos artísticos de denúncia do vergonhoso abismo civilizatório em que sempre estivemos afundados. Mas, por sua riqueza temática e complexidade ficcional, acaba por passar abaixo do radar dos gabinetes do ódio, que, ao escolher os alvos de sua perseguição violenta, não enxergam além da epiderme, das palavras de ordem e das chamadas narrativas (infelizmente, outra palavra desgastada, usurpada do campo intelectual).
Além da realização de uma obra estética e politicamente corajosa, deve-se registrar em 7 prisioneiros o feito de fugir à tentação de propor soluções para uma tragédia que começou antes de nós, e sem perspectiva de acabar. Em vez de propor alguma coisa, 7 prisioneiros mostra que, sobre o Brasil, sua diversidade e as imensas injustiças que não conseguimos superar como povo, ainda pouco sabemos. Aliás, não sabemos nem quais são os problemas. Ao contrário do que muitos pensam, para essas injustiças não há solução simples, porque, entre outras razões, o Brasil não é para principiantes.
Direção: Alexandre Moratto
Roteiro: Alexandre Moratto, Thayná Mantesso
Edição: Germano de Oliveira
Fotografia: João Gabriel de Queiroz
Design de Produção: William Walduga
Elenco: Christian Malheiros, Rodrigo Santoro, Vitor Julian, Lucas Oranmian