Cidade Invisível: 1ª temporada

Se Neil Gaiman tivesse passado férias no Amazonas, certamente ouviria sobre a lenda da Iara e escreveria um livro chamado “Deuses Brasileiros”. Há muitas semelhanças entre Cidade Invisível, série da Netflix criada por João Saldanha (A Era do Gelo 2, Rio e O Touro Ferdinando), e Deuses Americanos, série adaptada do livro que Gaiman, de fato, escreveu. Isso é bom. Mas também há diferenças cruciais, que tornam a produção tipicamente brasileira e única.

Isso é ótimo.

Trama policial e fantasia

Um agente da Polícia Ambiental (Marco Pigossi), logo depois de perder a esposa (Julia Konrad), encontra um boto cor-de-rosa, animal de água doce, morto na praia. À noite, o boto vira um homem.

Enquanto Eric precisa lidar com o luto, ser pai e desvendar um crime, elementos fantásticos vão aparecendo. Cidade Invisível aproveita a estrutura clássica dos suspenses policiais, a princípio um gênero familiar ao público, para colocar sua porção “mágica” sobre uma base mais sólida.

Quando personagens fundamentais da sua história são a Cuca (Alessandra Negrini), o Bicho-Papão (Jimmy London) e o Saci (Wesley Guimarães), dar um pouco de segurança a quem assiste é importante. Em primeiro lugar, porque uma figura da nossa realidade – como um policial – “empresta” parte da sua credibilidade para a fantasia. Em segundo lugar, porque a trama desperta interesse. Afinal de contas, o que engaja mais do que a curiosidade para descobrir quem cometeu um assassinato?

Os muitos significados de “cidade invisível”

Se, por um lado, é fácil entender que a “cidade invisível” se refere aos mitos do folclore vivendo no Brasil de hoje, o título da série tem dois subtextos menos óbvios, mas igualmente importantes.

Não é por acaso que esses deuses brasileiros sejam, todos eles, figuras historicamente marginalizadas. A mãe solteira, o escravo, a vítima de feminicídio. Ao contrário de Deuses Americanos, em que as divindades são tão poderosas quanto são idolatradas, o folclore brasileiro é formado por pessoas que, logo depois de terem a existência sufocada pela opressão social, são empoderadas para lutar pela sobrevivência. Principalmente, Cidade Invisível representa um reequilíbrio de forças.

Também não é por acaso que, uma vez expulsas de seus habitats, as figuras do folclore migrem para periferias. A dona de bar na Lapa e o morador de ocupação para sem-teto são parte desta “cidade invisível” que os moradores dos grandes centros urbanos fingem não existir. Da mesma forma estão os moradores da comunidade ribeirinha, sob constante ameaça de despejo por um especulador imobiliário interesado em construir um resort no área de floresta, sob o pretexto de “preservar melhor”.

Eric, o protagonista ideal

Quando uma história precisa apresentar um mundo com tantas regras próprias, principalmente quando são regras que desafiam a lógica do dia a dia, ter um personagem que conheça este mundo tanto quanto o público faz a apresentação ser muito menos expositiva. Se o personagem é o protagonista, as descobertas podem ser empolgantes.

Acima de tudo, Eric é um marido de luto e um pai sem rumo. Quando o boto na caçamba da sua camionete vira um humano, o seu espanto é o espanto do público. Pense, em contraste com Jogador Nº 1: Steven Spielberg entope o seu filme de narrações e diálogos forçados para explicar as regras daquele mundo virtual.

Por sua vez, Cidade Invisível torna as explicações em momentos muito mais visuais, orgânicos e atraentes. Porque Eric não sabe o que está acontecendo, mas precisa descobrir para proteger sua filha. A motivação é clara. Quando, ao fim da temporada, ele entende a importância das criaturas folclóricas, não é uma necessidade do roteiro, mas a conclusão de uma jornada de aprendizado. Aprendizado este que, por analogia, se aplica também ao público: devemos valorizar as nossas riquezas. A nossa cultura. A nossa identidade.

A primeira temporada de Cidade Invisível já está disponível na Netflix.

Ficha Técnica

Cidade Invisível (2021) – Brasil
Direção: Luis Carone e Júlia Pacheco Jordão
Roteiro: Antonio Arruda, Rodrigo Batista, Marco Borges, Regina Negrini e Felipe Sant’Angelo
Edição: Marcelo Junqueira, Maria Claudia Guaratto, Helena Maura, Rodrigo Menecucci e Fernando Stutz
Fotografia: Glauco Firpo & Kaue Zilli
Design de Produção: Fábio Goldfarb
Trilha Sonora: Chris Jordão e André Melges
Elenco: Marco Pigossi, Alessandra Negrini, Jéssica Córes, Julia Konrad, José Dumont, Wesley Guimarães, Jimmy London & Manuela Dieguez