‘Fargo’, molduras e o impressionismo

Última atualização: 07/03/2021

A primeira temporada de Fargo saiu em 2014, mas eu só a assisti em 2021. O motivo da demora é tão simples quanto equivocado. Imaginei que a série simplesmente repetiria o filme de mesmo nome (lançado em 1996), e que por isso não ofereceria nada de novo. Na época, não procurei nem mesmo conhecer o ponto de partida dos episódios. Há um ditado que oferece um bom alerta contra posturas desse tipo: não julgue um livro pela capa. Ou, não julgue uma série pelo filme.

Lorne Malvo em frente a um elevador

Fargo contra Fargo

No fim das contas, o ditado estava certo, e eu estava errada (vencida pelo sistema, mais uma vez). Fargo (2014) e Fargo (1996) são dois exemplos de obras muito boas, que não se excluem, mas também não se repetem. Claro, a série até faz várias referências ao filme, mas não é preciso compreendê-las para curtir os episódios. O ponto em que as duas obras se encontram de forma mais evidente, que é também o motivo dos títulos idênticos, é a cidade de Fargo. Agora, você pode estar pensando “ah, entendi, então as duas histórias acontecem em Fargo”. Mas, calma aí, aqui vai mais um ditado: apressado come cru. As duas narrativas acontecem em Minnesota, que fica a 161km de Fargo.

Lorne Malvo em reunão

Qual é, então, a explicação para o título? Noah Hawley, criador da série, oferece uma resposta interessante. Segundo ele, Fargo é “um estado de espírito. É uma palavra que remete a uma cidadezinha gelada, que te faz pensar em um certo tipo de história.“. Além dessa explicação mais direta, traduzida de uma entrevista, há também uma resposta dentro da série. Você pode encontrá-la na primeira temporada, mais especificamente, na penúltima cena do segundo episódio.

O que é visto

Nessa cena, acompanhamos Molly (Allison Tolman), policial protagonista da série, conversando com Lou (Keith Carradine), seu pai, que é também um policial aposentado. Na conversa, a câmera se aproxima de Lou enquanto ele fala sobre a sua preocupação com o trabalho de Molly. Seu conselho final, dito no momento em que a câmera atinge o ponto máximo de proximidade, é o seguinte: “um dia você vai se casar, vai ter filhos. E, quando olhar para eles, para seus rostos, você precisa ver o que há de bom no mundo. Porque, se não, como vai viver?”. Essa cena é um bom exemplo de uso inteligente dos planos aproximados, que servem para dar intensidade à fala de Lou (para ver um exemplo de má utilização, clique aqui).

Molly olhando a TV

Intensidade que, aliás, é muito bem-vinda, porque a fala sintetiza a trajetória de Molly. Não só isso, o conselho de Lou ilustra muito bem um dos temas da série, que justifica a escolha do título. Veja, a série se passa em Minnesota, mas ela se chama Fargo. Fargo, um estado de espírito, nos remete a um tipo específico de histórias: violentas, brutais, selvagens. Molly mora em Minnesota, mas o seu trabalho como policial a transporta para Fargo. A preocupação do seu pai é justificada, porque Molly realmente está em um lugar diferente daquele que os outros habitantes da cidade ocupam. Quando ela olha pela janela, a paisagem que ela vê é diferente da que é vista pelo seu vizinho. Porque, pode até ser a mesma cidade, mas as janelas são diferentes. Ou, melhor dizendo, as molduras.

Sobre as molduras

Fargo não é sobre pinturas (exceto se você contar sangue como tinta), mas tem muitas molduras. Quando falo de molduras, não falo das douradas e chiques, arrodeando paisagens com palavras em francês. Falo do sentido mais simples da palavra: enquadramentos que destacam algo. Emoldurar significa dar importância a um recorte: pendurá-lo na parede para convidar os olhos. Em Fargo, as molduras são quase sempre de cenas violentas, diretamente ligadas à trama (os vestígios do crime) ou incidentais (um açougue). Não está entendendo? Então, sugiro que olhe bem para as imagens deste texto. Você vai encontrar, em cada uma delas, uma moldura destacando um pedaço de violência.

Molly olhando um painel

Essas molduras nos mostram qual é o tema da série: a violência, brutalidade e selvageria que, mesmo sem motivo, às vezes acontece. Na terceira imagem, Molly olha a imagem de Lorne Malvo, o assassino, em uma televisão. A televisão é, aliás, uma moldura interessante: ela está em todo lugar, e destaca qualquer coisa. Além desse momento há outras três ocasiões em que Molly se vê de frente a uma televisão. Nas duas primeiras, ela a ignora, e foca nos crimes que investiga. Entretanto, na terceira ocasião Molly senta ao lado da sua família, e efetivamente assiste ao programa que se desenrola.

Esse terceiro momento é também a última cena de Fargo. Há uma referência clara ao filme, mas não é só por isso que a série se encerra assim. Com a resolução dos crimes, Molly finalmente consegue sentar com sua família e relaxar. Ela muda o foco e consegue olhar para outra moldura, que não seja de violência. Com isso, ela pode prestar atenção no ambiente em que vive, sair de Fargo e finalmente olhar para Minnesota, e prestar atenção… Na luz que há ao seu redor.

Finalmente, o Impressionismo

Prestar atenção na luz ao seu redor é uma boa forma de definir o Impressionismo. Esse movimento nasceu do desejo de libertação de um grupo de artistas, que queriam pintar de uma forma diferente daquela ordenada pela Academia de Belas Artes Parisiense. O padrão da época era pintar modelos religiosos, dentro de um estúdio e fora da realidade. Mas o que os impressionistas queriam era pintar fora do estúdio, destacando as pessoas e lugares ao seu redor, prestando atenção em tudo que havia de efêmero, como a luz, que muda com o passar do dia. Foi com o Impressionismo que nasceram pinturas como esta, esta e esta.

Molly e Gus olhando pela janela

Se não fosse policial, Molly poderia ser uma pintora impressionista. Ela também não abre mão da realidade, mesmo quando se afasta da visão religiosa e romântica que um ambiente controlado pode oferecer. E é justamente por não recuar, por olhar as coisas como elas são, que Molly consegue interferir no ambiente ao seu redor. Foi assim que os impressionistas também conseguiram alterar seus arredores: depois deles, a Academia de Paris perdeu poder, a pintura saiu dos estúdios e foi para a cidade.

Quando Lou disse a Molly que ela precisa ver o que há de bom no mundo, ele queria que ela mudasse de profissão; olhasse para coisas boas, e não ruins. Mas arrisco dizer que a escolha de Molly, que é também a do Impressionismo, me parece mais acertada. Porque o segredo não está em fechar a janela e voltar para o estúdio. Está em lutar para mudar a paisagem: com tinta e pincéis, como os pintores; ou com atenção e inteligência, como Molly. Para sair do gelo de Fargo, é preciso antes encarar de frente o que ele tem para nos mostrar. Só assim se chega à Minnesota.

Para assistir à primeira temporada de Fargo, clique aqui.


Ficha Técnica
Fargo (2014- ) – Estados Unidos
Direção: Noah Hawley
Roteiro: Noah Hawley
Edição: Regis Kimble
Fotografia: Dana Gonzales
Design de Produção: Warren Alan
Trilha Sonora: Jeff Russo
Elenco: Alisson Tolman, Billy Bob Thornton, Martin Freeman, Colin Hanks

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