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A filha perdida

Última atualização: 11/01/2022

Para descrever melhor determinados aspectos do filme A filha perdida (2021), de Maggie Gyllenhaal, decidi incluir spoilers.

Antes de assistir ao filme, li e escutei apenas comentários elogiosos ao trabalho de estreia de Maggie Gyllenhaal na direção cinematográfica (depois concordei com todos). Penso que o sucesso de Gyllenhaal se deve, em princípio, à escolha acertadíssima por abordar uma questão específica do feminismo branco, onde a diretora reconhece seu lugar de fala.

A questão é específica, mas absolutamente central. A saber: a crise existencial da mulher branca de classe média que deseja alçar voos profissionais, mas se vê obrigada a cumprir com a obrigação burguesa de parir e criar filhos, e fazer do lar um remanso para a vida pública de seu marido.

Estou mais ou menos restringindo essa questão ao universo das mulheres brancas de classe média e alta. Mas prevejo sua ocorrência em classes menos favorecidas também. Trato das mulheres brancas porque grande parte das mulheres negras, isso hoje é ponto pacífico, sempre trabalhou e deixou seus filhos em casa, uns criando os outros, para cuidar dos filhos das patroas brancas.

Na imersão profunda no universo da intelectual e Professora Leda Caruso (Olivia Colman), Gyllenhall não apenas apresenta a maioria dos elementos presentes na crise que pretende descrever e narrar, como excede expectativas. Sua adaptação à linguagem cinematográfica (Gyllenhaal também assina o roteiro sobre o romance de Elena Ferrante) permite a mesclagem com aspectos normalmente fora do universo dos filmes existenciais e intimistas. E a diretora faz isso de maneira absolutamente orgânica, mapeando brilhantemente o percurso em direção à loucura de uma mulher que não se encaixa nos padrões burgueses e patriarcais.

Sobre o feminismo branco – a partir daqui, SPOILERS

O enlouquecimento de Leda, que Gyllenhaal recorta apenas em seu início, não é uma trajetória somente individual. Muitas doenças são manifestações e evidências de que somos pessoas integradas ao tempo e espaço em que vivemos. Por essa razão, a enfermidade de Leda é prevista pelos que estudam os aspectos da subjetividade ocidental e judaico-cristã. Por isso, é possível nos identificarmos com alguma das fases do processo de Leda. Igualmente, poderemos desenvolver empatia e compreensão por seus sentimentos e ações.

Leda e Will

Contudo, mesmo recortando o universo de mulheres brancas, Gyllenhaal descortina algo que estrutura todas as sociedades da Terra: a milenar opressão dos homens sobre as mulheres, que sempre encontrou tempo e oportunidade para se multiplicar de infinitas maneiras.

Para isso, a diretora encontra formas de expor um pouco da diversidade inerente à subjetividade feminina contemporânea. E faz isso no cotejo entre Leda e as duas outras mulheres que conhece em sua viagem: Callie (Dagmara Dominczyk) e Nina (Dakota Johnson). É a essa comparação que Gyllenhaal se dedica: mesmo diante do belíssimo litoral grego, os planos fechados nos rostos das personagens indicam que seu interesse é mesmo nas jornadas pessoais.

Três mulheres lidando com o patriarcado

Callie, Nina e Leda personificam três dentre as inúmeras possibilidades de vivência feminina na contemporaneidade. Callie é a mulher plenamente adaptada ao modelo branco burguês, e na narrativa do filme acaba de alcançar o máximo da idealização da mulher do lar da classe média: conseguiu engravidar, mesmo tardiamente, e é notável sua felicidade em ostentar a barriga imensa como se fosse um troféu.

Além de perpetuar a espécie, Callie também cumpre outro papel feminino perpetuador: o dos valores que vive e defende. Segue Nina pela pequena cidade em que está hospedada sua imensa família para garantir que a moça não se desgarre das obrigações de esposa e mãe.

Leda jovem

Nina é a mulher que, por motivos que Gyllenhaal sabiamente não explicitou, até porque o que interessa mesmo é o resultado, tentou caber no modelo burguês, mas não conseguiu. Muito provavelmente não tem uma formação profissional. Portanto, resta-lhe conformar-se em ser a esposa-troféu (pela segunda vez uso o termo “troféu”: no modelo patriarcal burguês branco, mulheres e filhos não passam de troféus que homens exibem para outros homens).

A imensa infelicidade de Nina e a falta de recursos para sair da armadilha onde está presa são defendidas de maneira sutil por Dakota Johnson. A atriz não confere à personagem nenhuma sugestão de que um dia poderá rebelar-se. A frase de sua pequena filha Elena – “Mamãe não tomou o remédio hoje” – revela como Nina sobrevive à sua condição. É isto: o mundo cria a doença mas também cria o remédio – anestesia, melhor dizendo. Pelo comportamento de Nina, parece que as pílulas não estão fazendo nenhum efeito, se é que fazem em alguém.

Processos existenciais complexos

Mas Callie e Nina não se prestam apenas como cotejo ao processo de Leda. São desencadeadoras de uma desestruturação que estava ali apenas esperando por uma oportunidade. A mera visão de Nina e Elena é suficiente para que as lembranças de uma jovem mãe Leda retornem, e rapidamente notamos que suas culpas foram recalcadas, portanto nunca trabalhadas. De todo modo, mesmo com o retorno aos flashbacks em que Jessie Buckley encarna a Leda mais jovem, o encaminhamento do filme é majoritariamente sincrônico. O passado se presta a compor um quadro mais completo dos elementos que justificam a desestruturação emocional de Leda no presente.

Mas o passado de Leda é fundamental para entendermos que sua desestruturação se compõe de uma regressão paulatina. Ao longo do filme, a personagem no presente passa a agir de maneira cada vez mais imatura, até chegar à infantilidade. Se mais Gyllenhaal tivesse filmado, muito provavelmente veríamos Leda em posição fetal com o polegar na boca, tal qual a pequena filha de Nina.

Nina e Elena

Sobre isso, é interessante notar o momento exato em que as Ledas mais jovem e mais velha se encontram no filme. É justamente na sequência da festa, em que Leda dança uma de suas canções preferidas. O faz absolutamente despreocupada dos efeitos conhecidos e ainda a conhecer de sua ação de furtar a boneca da filha de Nina. É na cena da festa que Olivia Colman, brilhante todo o tempo, oferece seu ápice de talento e entendimento da complexidade da personagem, para além de sua própria participação como Leda.

O recalcado sempre retorna

A visão de Nina e sua filha despertam em Leda uma inveja provavelmente resultante de carências infantis não resolvidas. Tal hipótese, a meu ver, justifica o furto da boneca. Sempre acreditei que essa espécie de transgressão significa suprimir algo de alguém para, de alguma forma, ser como esse alguém. Ou seja, tomar a boneca de Elena manifesta o desejo de ser como Elena: amada, acolhida por uma grande família que a protege.

E, de fato, em algum momento a Leda jovem desabafa com o marido o desejo de não ver suas filhas na companhia de sua mãe. Isso já fornece uma ideia de como foram seus primeiros anos. A boneca que Leda preservou (talvez o único tesouro resgatado de uma infância triste) e deu para as filhas é vandalizada por uma delas, o que é motivo para Leda destruí-la. Roubar uma boneca também vandalizada é o detalhe fino de uma personagem que se perde de si mesma numa tentativa canhestra de resgate e redenção.

Leda e o professor

A relação de Leda com sua sexualidade é outro sinal das carências da personagem, e com a qual ela também lida sem qualquer trabalho de análise. Isso é algo a se estranhar no caso de uma intelectual, professora da Ivy League estadunidense. Assim como as frutas que, vistas de cima, escondem a podridão que as destrói. Leda envolve-se de maneira também inconsequente com um professor famoso, abrindo a possível leitura de que o faz porque ele lhe dá atenção e valor. Ao contrário do que faz com as filhas, que imploram em vão pela presença e afeto que ela não pode dar. Essa inconsequência acaba sendo a marca das ações de Leda no presente, depois que Nina e Elena trazem o recalcado à tona.

Quem é de fato a filha perdida

Como objeto do desejo infantil de Elena e Leda, à boneca é conferido um espaço muito especial por Gyllenhaal. Por mim, ela deveria constar do elenco do filme em bases de dados como o IMDb. É com ela que, mais uma vez, a diretora mostra que chegou para ficar. O relacionamento entre Leda e a boneca enriquece estruturalmente o filme, acrescentando um dado de suspense e preocupação com a personagem. Leda lida de maneira absolutamente natural com o que roubou, como se merecesse por direito manter consigo um objeto que não é seu.

A cada vez que Leda recebia alguém em casa sem se preocupar em ocultar a boneca, meu coração palpitava de angústia. Quando finalmente ela entrega a boneca a Nina, o faz sem qualquer receio de revelar seu roubo. E, pior, sem qualquer justificativa plausível para uma pessoa adulta. Com isso, nota-se o estado a que a personagem chegou em seu processo de regressão. O fim do filme coincide com o princípio, talvez, da impossibilidade de Leda relacionar-se com outras pessoas em um mesmo plano de realidade.

Nina

Essa possibilidade permite reconhecermos que a filha perdida de que o filme trata talvez seja a própria Leda. A personagem precisou abstrair o passado para seguir vivendo. E essa abstração se lhe tornou fatal em termos se saúde mental.

Por fim, A filha perdida traz um final em aberto, não apenas sobre os acontecimentos. O filme se abre também à reflexão sobre um mundo que construiu sua prosperidade material às custas da insanidade coletiva. Por essa razão, A filha perdida, como filme, se junta a trabalhos literários como o de Mariana Enriquez, que também se preocupa com a loucura criada por um mundo doente.

Comparando filmes

Eu gosto de comparar filmes porque isso ajuda na minha argumentação e na avaliação sobre eles. É possível comparar A filha perdida a outros dois filmes de mulheres brancas que a Netflix lançou nas últimas semanas: Ataque dos cães, de Jane Campion, e Imperdoável, de Nora Fingscheidt, ambos resenhados por mim no Longa História.

Assim como muitos da crítica e público, gostei bastante de A filha perdida, mas seus elementos não compõem uma criação estruturalmente notável e original, como ocorre em Ataque dos cães. Além de articular passado e presente sem o recurso a flashbacks, o filme de Campion interfere no arcabouço do Western como gênero narrativo. Assim, produz entre seus elementos uma fricção que escancara as contradições do modelo patriarcal que os exemplares típicos do gênero referendam.

Leda no mar

As grandes qualidades de A filha perdida se encontram não em rasuras estruturais, mas, dentro de um padrão narrativo consolidado, residem na maneira como Maggie Gyllenhaal articula, a um só tempo, uma tragédia pessoal a uma organização social que é causa primeira da infelicidade que pode atingir metade da humanidade.

Essas qualidades distanciam A filha perdida de Imperdoável, que pretende descrever também uma tragédia pessoal, mas cedeu a um modelo comercial de cinema que recusa a profundidade temática, e por isso resultou numa colcha de retalhos mal costurada e sem acabamento.

De todo modo, até filmes ruins nos ajudam a entender o mundo. Mas fazer isso através de obras belas e complexas como Ataque dos cães e A filha perdida é muito mais inspirador e gratificante.


Ficha Técnica
The Lost Daughter (2021) – Estados Unidos
Direção: Maggie Gyllenhaal
Roteiro: Maggie Gyllenhaal, Elena Ferrante
Edição: Affonso Gonçalves
Fotografia: Hélène Louvart
Design de Produção: Inbal Weinberg
Trilha Sonora: Dickon Hinchliffe
Elenco: Olivia Colman, Jessie Buckley, Dakota Johnson, Dagmara Dominczyk, Ed Harris, Peter Saarsgard, Jack Farthing

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3 comentários em “A filha perdida

  1. A melhor análise que li até o momento sobre o filme. Admito que tbm tinha pensado que “A filha perdida” é a própria Leda; penso que a boneca tbm pode ser lida em outras perspectivas, inclusive psicanalíticas, como vc brilhantemente maneja. Bravo!!!

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