A amiga genial: 2ª temporada
Última atualização: 27/05/2022
Aqui no Longa História, comentei a primeira temporada da excelente série italiana A amiga genial. Adaptação da coleção de best sellers de Elena Ferrante, a série repetiu o sucesso da literatura. Por isso, seus espectadores (eu entre eles) esperam ansiosos pela quarta e última temporada.
Em meu texto sobre a primeira temporada de A amiga genial, levantei teses sobre a espinha dorsal da trama em torno de duas amigas de infância no sul italiano, região menos desenvolvida do país. Da mesma forma, contando que o leitor conhece a primeira temporada e minha tese sobre a estrutura da história das amigas Elena Greco (Margherita Mazzucco) e Lila Cerullo (Gaia Girace), sigo o mesmo fio argumentativo neste texto.
Sobre a primeira temporada de A amiga genial, afirmei que a geografia de Rione Luzzatti, bairro da periferia de Nápoles, é usada na trama para simbolizar imageticamente o espírito da série. Nesse sentido, o bairro seria um grande útero em que os personagens permanecem em potência latente, e o túnel que separa o bairro da cidade é um canal vaginal a ser atravessado pelas pessoas para que elas efetivamente “nasçam” para o mundo. Esse nascimento significa um desligamento dos valores retrógrados do bairro e o lançamento para a plena potência intelectual, afetiva e sexual, coisas impossíveis aos que permanecem em Rione Luzzatti.
Quem sai e quem fica
Na primeira temporada, A amiga genial propõe algumas causas e efeitos da manutenção das pessoas no espaço de Rionne Luzzatti, como que enraizadas ali para sempre. Sem dúvida, muita gente permaneceu no mesmo lugar durante o tempo que transformou Elena e Lila de crianças a adolescentes, junto com os outros personagens em torno delas.
Na segunda temporada, acompanhamos os efeitos da definição dos destinos das duas protagonistas. Suas vidas, unidas durante os primeiros anos de estudo, se separam com a saída de Lila da escola. Elena, por sua vez, segue estudando, agora no centro de Nápoles. Em suma, esta consegue cedo atravessar o canal que separa o mundo do útero de sua infância, mas aquela não.
Os efeitos dessa diferenciação crescem como bola de neve, e fazem emergirem mais traços do caráter e da personalidade de ambas. Podendo seguir seus estudos, Elena encontra espaço para expandir-se intelectualmente. Lila entretanto, permanece em Rionne Luzzatti, e, sem espaço para a expansão que Elena está experimentando, passa a usar sua inteligência para manipular as pessoas. Inclusive Elena.
Escolha você, espectador, quem é a amiga genial
Vale, neste momento, chamar a atenção para o título da série. A amiga genial, no singular, deixa para o espectador a tarefa de escolher a qual das amigas ele atribuirá o adjetivo genial. Eu escolho as duas. Cada uma é especial à sua maneira. Lila é brilhante por natureza, mas não o suficiente para administrar essa inteligência de forma sensata em função de um bem-estar duradouro. Age por impulso, inveja e rancor, não raro sofrendo na pele (literalmente) os efeitos de sua leviandade.
Por sua vez, Elena é brilhante no desempenho escolar, mas durante a adolescência esse desempenho é ameaçado por sua falta de auto-estima. A instabilidade de suas notas obedece à sua insegurança em relação ao próprio corpo e à sua capacidade de seduzir alguém e ter sucesso na vida. Por consequência, Lila rapidamente percebe que pode usar Elena para se sentir menos fracassada em seu desejo de voos mais altos. Sempre que pode, ameaça Elena – por exemplo, lendo e comentando algum livro para mostrar à amiga que rapidamente pode ultrapassá-la nas notas se retornar à escola.
É de dar raiva testemunhar as vezes em que Lila desmerece Elena para se vingar e disfarçar seus complexos. No entanto, Elena permanece sem romper com a amiga. Provavelmente, a personagem, ainda adolescente, não tem elementos emocionais para compreender a necessidade desse rompimento para sua saúde emocional.
Com toda a certeza, entretanto, se acaso considerarmos as diferentes reações de ambas frente aos desafios da vida, pode-se dizer, na segunda temporada de A amiga genial, que suas protagonistas ainda não saíram de Rionne Luzzatti, em algum sentido. Se é que um dia sairão completamente.
Em A amiga genial, personagens paradoxais, como todos os seres humanos
Lila permanece no bairro em corpo e mente, afundando-se ainda mais nele ao estreitar relações com os abonados e mafiosos do local. Na certeza (nem sempre correta) de que ao fim será bem-sucedida, age intempestivamente, em função apenas dos próprios interesses. Pouco repara nas pessoas ao redor, e isso inclui Elena, cujo interesse por um dado rapaz passa abaixo do radar de Lila. Mas Elena observa Lila constantemente, como aquela que traz as qualidades que a completaria e a plenificaria como pessoa. No entanto, diferentemente, Lila considera Elena como se esta fosse uma parte sua. Justamente a parte que falta para ela ser brilhante em todos os sentidos.
Elena não consegue se libertar da marca de classe que carrega até o centro da cidade, e que a faz se sentir incompetente e apenas reconhecer a verdade em críticas, e não elogios. Além disso, a presença de Lila em sua vida a ameaça ainda mais. A sombra da inteligência da amiga é um freio emocional para seu desejo de potência. Não importa quanto estude, Lila sempre será mais brilhante do que ela. A competição com a amiga também a leva a atitudes impensadas, mas, paradoxalmente, a certeza de que Lila confia em sua inteligência a motiva a seguir estudando.
Em uma cena particular, acontecida exatamente no túnel de Rione Luzzatti, Elena mostra que ainda busca segurança existencial no bairro onde nasceu e cresceu. Talvez Lila seja parte de sua plataforma de lançamento para o mundo, mas seus recalques a levam de volta ao bairro, como garantia de que ali não há pessoas com parâmetros para avaliá-la. Portanto, lá ela será sempre aceita, embora seu desprezo pelos vizinhos aumente a cada dia, a ponto de em algum momento poder ser notado.
Lutando contra a poeira
Pela segunda temporada, o espectador acompanha a manifestação sofisticada de como uma protagonista precisa da outra para seguir vivendo. Buscam-se mutuamente para sobreviver aos recalques de uma infância pobre, tacanha e patriarcal. Além disso, a trama ajuda a compreender que esse patriarcado é algo que mutila o espírito e o intelecto não apenas das mulheres. Muitos personagens masculinos são violentos e imensamente infelizes sob a obrigação de serem machos, ricos e poderosos. Alguns deles desejam Lila não como mulher, mas como presa feroz a ser domada e colocada na sala como um troféu à masculinidade.
Em resumo, pode-se dizer que, na segunda temporada de A amiga genial, as contingências sociais e de imagem, e a opressão de gênero e classe seguem moldando personalidades e provocando paralisias de todo tipo nos personagens que conhecemos ainda crianças. Sem dúvida, para a terceira temporada, resta imaginar se a vontade de plenitude de alguns deles será realizada, ou se eles sucumbirão mais ainda, em corpo, espírito e desejo, na poeira das ruas de Rione Luzzatti.
Direção: Saverio Costanzo
Roteiro: Saverio Costanzo
Edição: Francesca Calvelli
Fotografia: Fabio Cianchetti
Design de Produção: Giancarlo Basili
Trilha Sonora: Max Richter
Elenco: Margherita Mazzucco, Gaia Girace, Annarita Vitolo, Antonio Buonanno, Luca Gallone, Gennaro de Stefano, Elvis Esposito, Francesco Serpico, Giovanni Amura