100 quilos de estrelas
Última atualização: 22/11/2020
100 quilos de estrelas se inclui em um gênero cinematográfico dominado por estadunidenses: o coming-of-age. Muitos cineastas já exploraram as crises existenciais e os desencontros e desentendidos da juventude, invadindo a Sessão da Tarde com filmes medíocres. Mas de vez em quando aparecem obras realmente interessantes, como, mais recentemente, Quase 18 e Eighth Grade.
No entanto, é comum que, nesses filmes, tais experiências se articulem a valores éticos estadunidenses, como a competitividade, por exemplo. Neles, o amadurecimento do jovem recebe como prêmio a vitória em algum concurso ou seleção. Crescer e vencer se tornam sinônimos. Nada mais previsível: perdedores não têm lugar no american dream. Assim, numa sociedade que valoriza os fortes e prega a vitória como o adubo da autoestima, em filmes coming-of-age estadunidenses a noção de maturidade é sinônima à de força.
100 quilos de estrelas, um coming-of-age à francesa
Por isso, é com alegria e alívio que assistimos a filmes como o francês 100 quilos de estrelas. É óbvia a expectativa de que a história de quatro adolescentes desajustadas (eu sei, “adolescente” e “desajustado” juntos é redundância, mas vamos só por ora deixar assim) o suficiente para serem internadas em centros de reabilitação médica e psicossocial envolva algum desafio que as leve a sentimentos e aprendizados importantes. Mas a desobrigação de coroar esse processo com o primeiro lugar em alguma competição permite dedicar tempo e foco ao que realmente interessa: a angústia de ser o que se é, algo que é muito pior na adolescência.
A diretora Marie-Sophie Chambom aceita o desafio de ocupar a lacuna narrativa decorrente de sua recusa à necessidade de que a protagonista vença algum adversário. Isso significa, entre outros efeitos, não rechear seu filme com os suspenses recorrentes em filmes estadunidenses, como o risco de as coisas não darem certo ou não acontecerem a tempo. Assinando o roteiro em parceria com Anaïs Carpita, Chambom opta pela ideia do amadurecimento como realização de grandes feitos. Com isso, o que se tem na tela é um filme cheio de delicadeza, que nos dá tempo para conhecermos um pouco da singularidade das personagens.
O problema de se ter um corpo
O excesso de peso de Lois (Laure Duchene), incompatível com seu desejo de experimentar a gravidade zero na extratosfera, acaba levando-a ao tal centro de reabilitação. Lá, ela conhece mais três meninas. Todas carregam corpos que não aguentam mais o esforço para corresponder a expectativas estéticas e sociais do ocidente contemporâneo.
Amélie (Angèle Metzger) é uma menina solitária e com problemas de autoimagem que desembocam em comportamentos anoréxicos e bulímicos. Stannah (Pauline Serieys) é uma jovem que já experimentou os prazeres da juventude e da beleza, mas perdeu o movimento das pernas. E Justine (Zoé de Tarlé) está em descompasso com a contemporaneidade, desenvolvendo uma intolerância emocional a aparelhos elétricos e eletrônicos e a sinais de rádio, telefone e internet.
Numa mesma enfermaria, quatro corpos cujas características e necessidades não cabem nas imposições do mundo. Sem terem ainda elementos conceituais para lidar com o problema de terem corpos, as donas deles sonham com os vinte segundos em que, no espaço sideral e sem gravidade, seria como se elas não os tivessem. Ou seja: para elas, a solução para o problema de ter um corpo é não ter um corpo.
Uma jornada de (algum) autoconhecimento
Os efeitos desses corpos não alinhados aos padrões estéticos do mundo ocidental são diversos nas vidas das meninas. Mas todas alimentam no fundo a mesma angústia: o sentimento de que não merecem ser amadas por terem os corpos que a vida lhes deu. Nesse pormenor, é um achado que Marie-Sophie Chambom assuma que não apenas adolescentes passem por isso. A mãe de três filhas que não acredita nas palavras de amor e desejo do marido mostra que nem sempre tornar-se adulto é suficiente para se aceitar o amor como algo natural.
Além da estética coming-of-age, 100 quilos de estrelas também bebe da fonte do cinema estadunidense ao incluir, por um período breve (afinal, a França é bem menor que os Estados Unidos), a narrativa dos road movies e a subsequente metáfora da vida como uma viagem. As meninas fogem do centro de reabilitação para dirigirem-se ao complexo espacial onde competirão por uma vaga na gravidade zero. Lá, as meninas enfrentam a vida real, de gente que investe em projetos concretos e os submete a avaliações de pessoas institucionalmente legitimadas. Uma vida fora das bolhas de proteção da família, o que as obriga a esquecer um pouco os problemas e a trabalhar em equipe para obter algum resultado concreto.
Durante a viagem, os desencontros e conflitos são obrigatórios – afinal, não é possível fugir completamente do modelo estadunidense. Mas esses momentos são necessários para que as meninas reformulem suas crenças e possam tomar as decisões realmente importantes para seus objetivos.
Pequenas e grandes soluções
É evidente que, muito jovens, as quatro personagens ainda não sabem explorar as vantagens que têm para solucionar seus problemas. Mas nem tudo é tristeza na sua relação com os próprios. Aqui e ali, suas condições físicas são úteis para resolver problemas pontuais, e essa solução narrativa é um pequeno achado das roteiristas. Reunidas em grupo, elas aprendem a olhar para além das próprias dores e a empatizar com a dor das companheiras.
Tais soluções são pequenas diante daquilo a que Chambom concede mais tempo na narrativa que constrói. Inteligente e criativa, Lois arregimenta as amigas para uma rigorosíssima seleção de jovens cientistas. Lá, a menina passa por uma série de novas situações, saindo-se bem em algumas, mas se atrapalhando bastante em outras, o que é absolutamente previsível. Mas, durante suas aventuras, o sonho e o conceito de não ter peso algum, de tornar-se leve, vão sendo ressignificados. É um símbolo do amadurecimento das amigas como efeito de suas aventuras.
Em 100 quilos de estrelas, vencer não é o mais importante
Ao fim, Lois acaba agindo de forma inteligente quando isso significa construir para si mesma o alicerce para uma vida futura. De forma bastante realista, Chambom não pretende que Lois ou qualquer de suas amigas solucionem todos os seus problemas e se tornem adolescentes resolvidas da noite para o dia. Nem adultos conseguem isso. Seria impensável extrair dos poucos dias nas vidas das meninas alguma sabedoria profunda. Mas as experiências conjuntas são sementes para um futuro menos assustador do que o tempo de horrores que a adolescência nos impõe.
Muita gente esperou por 100 quilos de estrelas, e o filme não decepcionou. Mostrou, em termos de Cinema, que sempre é possível refrescar gêneros desgastados. Duas das opções são: não entregar ao público desfechos narrativos inverossímeis; e propor uma mensagem que alcance meninas e meninos. De todos os tamanhos e de todas as idades.
Direção: Marie-Sophie Chambon
Roteiro: Anaïs Carpita & Marie-Sophie Chambon
Edição: Julie Dupré
Fotografia: Yann Maritaud
Design de Produção: Frédérique Doublet & Frederic Grandclere
Trilha Sonora: Alexandre de La Baume
Elenco: Laure Duchene, Angèle Metzger, Pauline Serieys & Zoé De Tarlé