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O negro é lindo no cinema Blaxploitation

Última atualização: 29/03/2024

Anos 1960: construção do Muro de Berlim, Guerra do Vietnã, corrida espacial, Woodstock! Esses eram alguns dos assuntos que chamavam a atenção das pessoas ao redor do mundo. Eram tempos de mudanças, a contracultura se fortalecia, as normas vigentes eram questionadas. No grande império americano, as reações aos acontecimentos eram políticas, sociais e estéticas.

Ao se falar de arte, especificamente de cinema, um panorama do período aponta que Hollywood estava falindo. O cinema épico está acabando, os musicais não são mais uma fonte segura de lucro. É um tempo de crise para o velho modo de fazer cinema. Mas em meio a esses dilemas surgem obras inflamadas pelos aspectos sociais vigentes.

Sidney Poitier, em Adivinhe Quem Vem Para Jantar?/Justwatch

O mundo muda e o cinema também

O sexo e a violência antes censurados pelo Código Hays (Motion Picture Production Code) passam a ser usados de maneira mais livre nas obras da época. Filmes da Nova Hollywood como Perdidos na Noite que abordam a prostituição masculina ou Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas provocam assombro em alguns. Mas, ao mesmo tempo despertam a atenção de outros justamente por seu conteúdo.

Em 1967, Norman Jewinson dirige No Calor da Noite um thriller policial no qual o protagonista, Sidney Poitier, investiga um assassinato em uma cidade provinciana e racista, no Mississipi. No mesmo ano, Poitier vive o genro de Spencer Tracy em Adivinhe Quem Vem Para Jantar.

Certamente a maioria da população negra vibrava com um representante de sua etnia enfrentando o racismo nas telas. Porém, não podemos esquecer que estamos falando de Hollywood. Mesmo com Sidney em cena os roteiros o mantém por tempos representando o negro bondoso, aceitável para o público branco.

Os perfis apresentados em Hollywood não deixavam para a população negra nada muito além dos estereótipos racistas que foram propagados ao longo das décadas de existência do cinema. Ainda que Hattie McDaniel tenha vencido o Oscar foi por sua Mammy, uma das imagens propagadas por décadas sobre os afro americanos. Diante da efervescente busca pela mudança do produto oferecido aos espectadores precisava ser renovado. 

A Noite Em Que o Sol Brilhou
Godfrey Cambridge, em A Noite Em Que o Sol Brilhou, de Melvin Van Peebles/IMDb

O olhar do Outro x o Meu olhar: o negro como sujeito 

As vitórias do Movimento de Direito Civis dos Negros podem ser vistos como responsáveis por essa ruptura com a imagem degradante do povo preto. Assim iniciou o período no qual o cinema estadunidense ficou marcado por uma série de produções encabeçadas por nomes que são lembrados até hoje como grandes representantes do povo afro-americano, o Blaxploitation.

Como bell hooks aponta em O olhar opositivo, o olhar do Outro, o branco, distancia o espectador negro da imagem que é apresentada. Esse espectador afro-americano diante do despertar racial que acontece em seu entorno exerce sua crítica sendo que essa já era recorrente. bell conta que

No lar sulino minha família negra e de classe trabalhadora, localizado em um bairro segregado racialmente, assistir à televisão era uma forma de desenvolver o senso de espectoralidade crítica. […] Os olhares negros, como foram constituídos no contexto dos movimentos sociais para a insurreição racial, eram olhares interrogativos. […] (HOOKS, s/p. 2017)

Em 1970, Melvin Van Peebles dirigiu A Noite Em Que o Sol Brilhou no qual um homem branco um dia acorda e descobre que virou negro. A ideia inicial era que o ator branco fizesse blackface nas partes em que interpretasse o negro, mas Melvin convenceu a Columbia Pictures a usar um ator negro com o rosto pintado de branco, na primeira parte do filme. O resultado foi uma boa aceitação do público e da produtora, além do lucro.

As produtoras estava diante de uma mudança que culminou na procura por corpos negros nas telas de cinema, e também da TV. O resultado foi essa onda de filmes protagonizados majoritariamente por afro-americanos, sobretudo ambientados em bairros e locais nos quais essas pessoas moravam, que exaltavam a (r)existência negra.

o chefão do gueto blaxploitation
Fred Williamson, em O Chefão do Gueto/IMDb

A origem do termo ‘Blaxploitation

Ao explorar a origem do nome Blaxploitation percebemos que essa alcunha foi dada de maneira crítica. A NAACP (National Association of the Advancement of Coloured People) é o grupo indicado como criador do termo ao unir as palavras black (preto) e exploitation (exploração). O que ela pretendia era apontar que aquele tipo de produção estava explorando a população negra e sua história.

É comum ver e ler entrevistas nas quais o ator Fred Williamson (O Chefão do Gueto) reforça que o termo Blaxploitation não quer dizer nada ofensivo para ele. Dessa forma, se os atores e realizadores negros estavam empregados, o público se via na tela e estava sendo entretido e, o personagem negro podia sair vivo de uma cena de tiros ou bater em um branco sem retaliação, não existia ali nenhuma exploração. Antes desse período um ator ou atriz negro, em Hollywood tinha dificuldades em se sustentar apenas com esse trabalho.

Desta forma o Blaxploitation produziu inúmeros filmes, de variados gêneros, entre os anos 1970 e 1978. (?) ajustar essa conclusão e as datas.

melvin van peebles blaxploitation
Melvin Van Peebles/Getty Images

O primeiro Blaxploitation

Com a aceitação do público a atores negros nas telas, como apontamos no caso de A Noite Em Que o Sol Brilhou, o mercado se movimentou para lucrar com essa nova demanda. O próprio Melvin caiu nas graças da Columbia, mas recusou a oferta para trabalhar em outras obras e mergulhou em seu projeto pessoal. Em 1971, estreou Sweet Sweetback’s Baadasssss Song. Revolucionário o longa contava a história de um fora da lei, negro, que sobrevive no final.

Entretanto, nosso foco se volta agora para a obra fundadora do Blaxploitation. No ano de 1970 o diretor Ossie Davis convence a MGM a produzir um filme baseado no romance de Chester Himes. Assim estreia Rififi no Harlem, marco do início do movimento. Rififi é um filme com fundo político que aborda o movimento back to Africa e reage contra a opressão sofrida pelos afro-americanos. 

Observando vários aspectos do filme podemos ficar confusos com a dualidade existente no protagonista, reverendo Dek O’Malley (Calvin Lockhart), um malandro que ludibria a comunidade em que cresceu. O que se espera é que o protagonista do filme seja um herói e não um enganador de comportamento questionável. 

rififi no harlem
Calvin Lockhart e Emily Yancy, em Rififi no Harlem/IMDb

Todos contra ‘O Homem’

Essa característica comum em boa parte dos personagens centrais dos filmes Blaxploitations era uma pedra no sapato da NAACP. A organização apontava o quanto essa imagem poderia ser nociva para as gerações mais novas. Esse perfil anti-heróico não era uma novidade. O cinema era cheio de justiceiros como os personagens de Charles Bronson, em Direito de Matar, ou o Loirinho de Clint Eastwood, em Três Homens em Conflito. Obviamente são personagens que matam em prol de “algo maior”. Mas ainda que seu caráter fosse questionável existia uma luz jogada sobre todas as áreas cinzentas que compõem esse ser humano único, moldado pelos percalços encontrados na vida.

Com personagens negros isso não existia, ou se era bom, ou mau. Sem meios termos. Ver em cena essa gama de personagens enganadores como Dek, vingativos como Coffy, atormentados por uma maldição como Blacula demonstra que não era apenas a imagem que estava sendo buscada, mas também a possibilidade de ser alguém autônomo e complexo.

As personagens desses filmes eram movidas por um mesmo ideal, destruir O Homem (The Man). Esse sistema opressor (herança da escravização) mantinha a população negra na pobreza, dependente de benefícios, sem acesso à educação e viciada em drogas. Precisamos entender que esse Homem não é o sujeito branco individual, mas um sistema. O que se chama atualmente de branquitude que mantém a população em inércia fazendo com que ela se movimente e se molde de acordo com a necessidade dos que detém o poder. Estamos falando de instituições que determinam como se portar. São elas a Igreja, a Polícia, os governos, a Mídia e etc, bem como de lugares de privilégios objetivos e subjetivos que estabelecem as relações de poder.

 

É negro o bastante para você?

Ainda que sejam anti-heróis, na prática todas se alinham em uma luta contra esse inimigo em comum. Não é atoa que a primeira frase que sai da boca de O’Malley é “É negro o bastante para você?” ao se apresentar para o público que o aguarda. Só para ilustrar, a personagem está muito bem vestido com um terno cinza, que é mostrado assim que um de seus assistentes tiram dele uma bela capa preta, com um forro prateado, que reluz ao sol, como um rei.

Com um discurso político associado à imagem de bondade – endossada pelo cargo religioso -, Dek vende uma viagem de volta ao continente africano, para que aquelas pessoas possam se encontrar na ancestralidade. Assim sendo, nos deparamos com uma mensagem que dialoga com movimentos da época que buscavam por meio das relações de diáspora resgatar a história roubada das origens dos descendentes africanos. Com efeito, ao longo de Rififi a população é movida por essa vontade de encontrar no passado sua devida importância.

Esqueçam os bandidos e os mocinhos, no Blaxploitation todo mundo é um pouco de cada

O filme se desenvolverá entre a busca pelo dinheiro roubado do povo enganado, que é roubado de Dek e se perde em um fardo de algodão. O fato de ser um fardo de algodão cru, também é um elemento que dialoga com a história do povo preto. Nos Estados Unidos a maior parte de concentração do uso da mão-de-obra escravo era em plantações de algodão. Ao fim do filme há a apresentação de uma peça musical, na qual a atriz de teatro performa sobre o fardo de algodão ao som de uma canção sobre liberdade. 

O “pulo do gato” em Rififi é que o, até então golpista principal, é ludibriado por uma outra personagem, que até então parece estar ali apenas como um dos elementos do povo. Como Dek quase se torna parte do Homem, por ser consumido pela ganância e tentar trair seu povo, precisa de existir em cena elementos que combatam esse mal. Assim sendo, temos três elementos nesse Blaxploitation que representam bem essa resistência: os dois policiais, Gravedigger Jones (Godfreey Cambridge) e Coffin Ed. Johnson (Raymond St. Jacques) e Tio Bud (Redd Foxx).

Revisando e deslocando estereótipos raciais 

Os dois policiais desde o início estão no encalço de O’Malley, tentando provar que ele é um mentiroso. Eles são negros, têm um bom cargo na polícia e são vistos como grandes profissionais por seu superior. O que torna essa dupla tão especial é perceber a quantidade de ironia que é adicionada nas sequências em que estes dividem a cena com as personagens brancas. Contrariando a fórmula racista comum no cinema, no Blaxploitation eles são os mais fortes, os mais espertos. Enquanto isso, seu chefe é uma versão branca do Pai Tomás e seu colega de trabalho, o oficial Jarema (Dick Sabol) o malandro idiotizado que sofre humilhações e sempre se dá mal. 

Já o Tio Bud, esse é o grande espertalhão. Ao perceber o valor que há naquele fardo de algodão, dá seu jeitinho de despistar a todos e simular sua morte. Seu destino em seguida: África, de volta para suas origens. Na cena de encerramento do longa, os policiais observam uma foto de Bud. O homem se encontra rodeado por três beldades negras, sendo tratado como um monarca. Ao mesmo tempo, leem o bilhete no qual ele narra toda sua armação. 

Há ainda outros elementos que caracterizam os Blaxploitations como a violência, doses de nudez, volúpia sexual. Na estética posso listar a exaltação às cores e formas, muitos elementos na cenografia e figurino que remetem à arte e cultura africana. E, é claro, as marcantes trilhas sonoras assinada por um grande nome da música R&B.

O fim de uma era?

Os filmes inicialmente atingiam tanto o público negro, militante ou não, quanto os brancos liberais/progressistas. Depois de um tempo os estúdios passam a impor suas ideias e os filmes ficam mais populares. O cinema ficam mais pop e menos crítico. Em meados de 1970 acontece uma entressafra na qual a TV reduz a quantidade de atores negros em seu elenco. Do mesmo modo Hollywood faz o mesmo, pois sua recuperação estava acontecendo diante do sucesso dos filmes da contracultura.

O baixo retorno financeiro, ainda que parecesse muito para aqueles atores e envolvidos que não estavam acostumados, era pouco para os estúdios. Os filmes B foram se tornando escassos. Entretanto é inegável o quanto esse período favoreceu a população afro-americana. Primeiramente, sabemos o quanto a imagem é importante na formação do ser humano. Ao se ver identificado na tela, através de seus reflexos. E isso fomentou no público a busca pelos seus pares nos produtos que eles consumiam. 

Em segundo lugar, o fator emprego. Pessoas que não poderiam em condições “normais” nos anos 1970 fazer um filme passaram a ter acesso ao mercado. Apesar de serem valores muito inferiores ao que os grandes estúdios ofereciam e arrecadavam na Era de Ouro, foi necessário para alavancar a carreira de nomes como Gordon Parks, Ossie Davis, Pam Grier e Richard Pryor

Uma marca na história afroamericana 

Em terceiro lugar, há reflexos do movimento até os dias atuais, são os ecos que o Blaxploitation reverberam até hoje. Quando assistimos a filmes policiais com nomes do movimento hip-hop, nos esbaldamos de rir com as produções dos Irmãos Wayans ou nos colocamos em ponto de reflexão diante das obras de Spike Lee, estamos presenciando os efeitos que essa abertura trouxe para o cinema contemporâneo.

Estamos em 2024, cinco décadas depois do Blaxploitation. Sabemos o quanto o filme de heróis de quadrinhos, Pantera Negra, provocou comoção entre a população negra mundial. A partir desse fato recente conseguimos entender que ainda há um caminho a ser percorrido no que diz respeito à equidade da diversidade nas telas. O quanto ainda há carência de representação e de representatividade. Sobretudo o quanto e como essa representação, quando apresenta, movimenta discussões sobre as causas raciais.

Sejam como super-heróis, badass women, justiceiros, ou pessoas comuns, vivendo o dia-a-dia não podemos esquecer o quanto aqueles destemidos anti-heroínas e anti-heróis dos anos 1970 criaram um forte alicerce para podermos existir no cinema …e resistir.

Mas sabem qual é o maior de todos os ecos? O negro é lindo! 

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