Matador de Aluguel
Última atualização: 31/03/2024
Este texto traz muitos spoilers sobre o filme “Matador de aluguel”, de Doug Liman (2024), estrelado por Jake Gyllenhaal e disponível na plataforma Amazon Prime.
Patrick Swayze e Jake Gyllenhaal são intérpretes frequentemente maiores do que seus filmes, por diferentes razões. Não digo isso desmerecendo o talento do para sempre querido Swayze, mas é que Gyllenhaal é um ator bem acima da média, capaz de salvar os piores filmes da vergonha total. Não chega a ser esse o caso de “Matador de aluguel”, mas não falta muito.
Provavelmente tendo aceitado reviver Elwood Dalton (na primeira versão, James Dalton) para pagar os boletos, Gyllenhaal dedicou-se com afinco. Tanto é assim, que o ator exibe em muitas cenas um abdômen esculpido por Michelangelo Buonarroti, o que ajuda na caracterização fidedigna de um ex-lutador de UFC. Sem contar, evidentemente, uma atuação que escapa do caricato, algo que seus colegas de tela infelizmente não são capazes de fazer.
Ao fim, o que se tem em “Matador de aluguel” é, em vez de um filme de ação, uma comédia involuntária, graças inclusive a um Jake Gyllenhaal se divertindo explicitamente em meio a tanta tosquice. Ou se pode pensar que é uma comédia mesmo, tantos os clichês espalhados pelo filme – o preferido da galera em geral é o do crocodilo, que bem podia ter aparecido mais vezes.
Se nada mais sobrar, “Matador de aluguel” pode entrar para a história do Cinema como o filme que atualizou a categoria violinistas do Titanic. E já está de bom tamanho.
Pra começo de conversa, concordo com todos os críticos de “Matador de aluguel”
No canal do Youtube Dalenogare Críticas, ficamos sabendo que a escolha da Amazon por refilmar o “Road house” de Rowdy Herrington (1989), sucesso das sessões da tarde estadunidenses, relaciona-se à memória afetiva do longa estrelado por Patrick Swayze entre os hoje adultos norte-americanos. Eu poderia, assim como fiz há dois anos em relação a “Top gun: Maverick” (2022) e “Top gun: ases indomáveis” (1986), rever o primeiro “Road house” para comparar as versões. Mas confesso que, a tomar pelos comentários sobre o filme, não fiquei muito animada, não.
Em seu canal, Dalenogare também nos informa acerca dos problemas de calendário que o atual “Matador de aluguel” sofreu sobretudo por causa da greve de roteiristas e atores nos EUA em 2023. Isso, segundo o crítico, pode ser responsável pelos defeitos técnicos que o filme apresenta. Mas, ele próprio salienta, não justifica todas as falhas do filme, principalmente as, digamos, artísticas mesmo.
Não apenas Dalenogare, mas muitos críticos que li e a quem assisti salientam que Doug Liman não é um diretor desprezível. Assina pelo menos três obras bastante populares e bem realizadas: “A identidade Bourne” (2002), “Sr. e Sra. Smith” (2005) e “No limite do amanhã” (2014). Porém, é também um diretor irregular, mas todo mundo, não apenas o Jake Gyllenhaal, tem boletos pra pagar. Atire a primeira pedra quem não tiver pecado.
O fato é que, por dias, os algoritmos do meu Google e do meu Youtube fizeram minha tela coalhar com críticas escritas e em vídeo para “Matador de aluguel”. Por isso, é claro que também fui lá conferir por que o filme estava chamando a atenção de tanta gente. Notei que os números de estrelas e notas dadas nas resenhas variavam bastante, o que aguçou ainda mais minha curiosidade.
Muitas pessoas não se importam se um filme é bom ou ruim
Ora, a gente sabe que há filmes para todos os gostos, e de toda qualidade. Há os pretensiosos, verdadeiros nadas embrulhados pra presente. Há os filmes imensamente populares sem abrir mão de serem obras de arte, o que dá no cinéfilo um orgulho imenso em ver que é possível o Cinema como Arte ainda assim ser popular. Mas há os filmes inverossímeis, que não passam de amontoados de clichês, bem como aqueles que nem os clichês conseguem ser bem aproveitados, o que é o caso do atual “Matador de aluguel”.
No passado, eu tinha muito horror a filmes assim, e me recusava a escrever sobre eles. Mas, com o tempo, comecei a pensar no que torna filmes medíocres e mal feitos sucessos de público. Aprendi porque descobri que as pessoas sabem que eles são mal feitos, mas não se importam. Elas estão se divertindo.
“Matador de aluguel” tem todos os defeitos apontados pelos vídeos e textos que vi e li. Mas traz uma coisa notável: a entrega total daquilo que é a estrutura clássica e estereotipada de um filme de um determinado gênero: ação, suspense, terror, drama, comédia etc. Isso atrai muitas pessoas, e elas entram no cinema e não querem ser traídas no recebimento do produto que compraram junto com o ingresso.
“Matador de aluguel” entrega tudo e não incomoda em nada
Há expectativas daquilo que se deseja assistir. Se a história começa de uma maneira, já se sabe mais ou menos como ela irá se desenrolar e como irá terminar. Pode ser assim: um forasteiro, herói ou anti-herói com um passado complicado, chega a uma cidade desconhecida. O que se espera é que sua presença cause alterações e fatos relevantes, que, ao fim, o obrigarão a ir embora, impedido de continuar ali.
Entre o começo e o fim da história, alguns acontecimentos envolvem antagonistas cujos projetos são atrapalhados pelo herói, e por isso eles reagem violentamente. O herói retalia, provocando involuntariamente a morte de comparsas, geralmente personagens violentos menos importantes – precisam ser violentos para nos congratularmos com a morte deles. Não raro, a forma de sua morte já havia sido anunciada por pistas no filme. É importante que essas pistas não sejam falsas, porque os espectadores querem receber exatamente o que foi prometido.
Ah, sim, e há uma personagem feminina para garantir ao público que o herói não é gay. Essa personagem pode ser aproveitada como pivô de algum perigo em que o herói se envolve para preparar o terceiro ato do filme. Este ato, por sua vez, envolverá o embate final entre o herói e o antagonista principal, que quase sempre termina com a morte deste, e, de novo, sem que o herói seja responsável por ela.
E pronto, está dada uma das muitas receitas do filme de ação. As perguntas que ficam: Quantas vezes já não vimos esse arco narrativo no cinema? Se já vimos esse filme tantas vezes, será que “Matador de aluguel ” é remake de um filme só?
Mas há filmes que contam com o espectador como um co-construtor da obra
Por outro lado, há inúmeros filmes que contam com nosso conhecimento de estruturas narrativas e fílmicas, consolidadas por anos em frente a uma tela de cinema ou TV. Frequentemente, filmes assim também contam com nossas experiências de vida, aprendizados e sofrimentos, para provocar nossa empatia em relação aos personagens. Esses filmes nos envolvem completamente e ficam em nossa mente por muito tempo. “Crescem” na memória, como muitos dizem.
Recentemente, esse fenômeno aconteceu com “Vidas passadas” (2023), escrito e dirigido por Celine Song. Uma hora e 45 minutos é o tempo suficiente para engatilhar memórias de muita gente, e não são poucas as pessoas que me confessaram ter saído destruídas emocionalmente do cinema, tais foram as lembranças de amores e experiências não vividas, ou mal vividas, ou escolhas mal feitas, ou arrependimentos e frustrações, que o breve encontro dos protagonistas do filme despertou.
Em termos mais especificamente de estrutura fílmica, “Zona de interesse“(2023), de Jonathan Glazer, explorou recursos cinematográficos sonoros para provocar em muitos espectadores um incômodo gigantesco, que os fez sair do cinema trocando as pernas. A assinatura sonora do filme despertou nos espectadores um horror que Glazer evitou mostrar visualmente, mas isso nem era necessário. Tudo estava em combinação com o conhecimento que muitos de nós temos sobre os cenários e fatos históricos que o filme aborda. Portanto, aqui também nos tornamos co-construtores da obra de Glazer.
É interessante notar que tanto “Zona de interesse” quanto “Vidas passadas” não estavam entregando ao espectador o que ele queria, mas sim oferecendo experiências estéticas inesperadas e emocionalmente deslocadoras. E esse feito é uma das características de uma grande obra de Arte: ela tira a gente de um lugar de conforto emocional.
A pandemia me ensinou que filmes como “Matador de aluguel” têm seu lugar
Mas nada disso eu estou dizendo para pintar sobre “Matador de aluguel” a imagem de um filme que não deveria ter sido feito. Há alguns filmes assim, e já falei aqui no Longa História sobre alguns deles. Considero filmes racistas, misóginos, preconceituosos em geral, como filmes que não deveriam nunca ser feitos. Mas eu mesma me diverti bastante com “Matador de aluguel”, e aprendi que filmes que são entretenimento, até os estereotipados, têm seu lugar.
Nem sempre queremos entrar no cinema e sair de lá incomodados. Às vezes queremos sair felizes, confortados, divertidos.
Durante a pandemia, eu fugi como pude de filmes que me tiravam de um lugar de conforto, porque todos nós fomos arrancados disso. Vítima de crises de angústia assim como 99,9 por cento das pessoas, a mera possibilidade de um filme oferecer alguma situação de suspense, ou terror, ou perigo, ou até uma simples quebra de expectativa, já me fazia evitá-lo. Mas, como todo mundo, eu precisava me distrair, esquecer um pouco nossa realidade duplamente trágica. Busquei então por várias vezes um entretenimento audiovisual que me desse tranquilidade e algumas horas de diversão agradável e sem perigo de qualquer ataque de pânico.
Essa muito provavelmente deve ter sido a escolha de muita gente.
Experiências cinematográficas de entretenimento e diversão também são válidas quando o filme não nos prega surpresas nem nos faz sentir ansiosos ou temerosos. Ficamos ali duas horas sabendo exatamente o que surgirá na tela – de preferência algo que nos desviará do mundo à luz do sol, seus problemas e dificuldades gigantescas que somos impotentes para resolver. Essa própria distração pode nos ajudar a esquecer os problemas por algum tempo para podermos voltar a eles mais fortalecidos e serenos.
Qual é, afinal, o papel do crítico?
Se filmes assim forem bem produzidos e bem interpretados, melhor ainda. E é aí que entra o trabalho do crítico: entre outras tarefas, para também salientar e justificar a qualidade – ou a falta dela – do audiovisual de entretenimento.
Não me defino como crítica de Cinema. Não tenho formação acadêmica em Cinema, nem realizei cursos formais, embora leia bastante sobre Cinema e procure me informar sobre aspectos técnicos da linguagem cinematográfica para detectar características que me ajudem a definir se um filme é medíocre, se é acima da média, ou se é uma verdadeira obra de Arte. Em resumo: compreender, através do produto acabado que se desenrola na tela, o seu processo de produção.
E também não gosto muito do termo “crítica”, porque ele já traz o ranço de uma ideia de que criticar uma coisa é falar mal dessa coisa. E isso é algo que estamos longe de fazer, porque nosso trabalho é sobretudo argumentativo.
Sempre penso na minha escrita como uma forma de expandir a experiência do leitor ao ver um filme. Faço isso também porque tenho notado que, no mais das vezes, as pessoas, ao falar de um filme, salientam exclusivamente o seu enredo.
Mas o enredo é o que menos interessa
De fato, o interessante mesmo é a forma de contar uma história, porque às vezes uma mesma história está sendo contada em um filme ou série pela milésima vez, como é o caso de “Matador de aluguel”. A forma como o realizador conta essa história, quais recursos visuais, sonoros, cromáticos, perspectivais etc., é que acaba sendo o grande foco de quem faz resenhas do audiovisual.
Saber que a forma de contar uma história, e com quais recursos, é o que realmente interessa, é algo que ajuda o expectador a se descolar da história. Ou, o que talvez seja até melhor, o ajuda a reconhecer que a história de um filme pode ser mais longa e duradoura do que o tempo que ele passou em frente à tela.
E muitos já sabem disso: muitos, como eu, acabam de ver um filme e correm para o telefone buscar textos e vídeos para estender ao máximo possível sua experiência estética, e saber mais sobre o Cinema como Arte, técnica e linguagem. Esses já descobriram o que motiva a nós, articulistas do Longa História: sempre há mais a dizer…
Direção: Doug Liman
Roteiro: Anthony Bagarozzi, Chuck Mondry. R. Lance Hill
Edição: Doc Crotzer
Fotografia: Henry Brahan
Design de Produção: Greg Berry
Trilha Sonora: Christophe Beck
Elenco: Jake Gyllenhaal, Daniela Melchior, Jessica Williams, Conor McGregor, Billy Magnussen, Joaquim de Almeida
Não estava interessada pelo filme mas após ler a resenha de Ana Flávia me animei em assistir. Realmente muitas vezes queremos um filme só pra rir, apreciar coreografia de lutas … Espairecer.