Até os Deuses Erram | Dossiê Sidney Lumet
¹Por Nilvio Pessanha
Última atualização: 05/06/2024
Até os Deuses Erram (The Offence, 1973)
Roteiro: John Hopkins
Elenco: Sean Connery, Trevor Howard, Vivien Merchant
Se há alguém que sabe o que é chegar ao fundo do poço, esse alguém são os personagens dos filmes do diretor estadunidense Sidney Lumet. É comum vermos, em seus filmes, seres levados a situações-limite, situações em que descem até seus infernos interiores, se defrontam com seus demônios mais profundos. É o que vemos com os irmãos Andy e Harry Hanson – interpretados por, respectivamente, Philip Seymour Hoffman e Ethan Hawke –, em Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto; e também com o Sonny Wortzik e Frank Serpico, personagens vividos por All Pacino, de forma respectiva, em Um Dia de Cão e Serpico.
Os personagens das obras de Lumet também se notabilizaram por sua complexidade, por se mostrarem dúbios, ambíguos, moralmente contestáveis. Novamente temos o caso dos dois irmãos Hanson, de Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto, que tramam o roubo da joalheria dos próprios pais, o que acaba desencadeando uma série de acontecimentos trágicos. O próprio Frank Serpico, vivido por Pacino em Serpico, embora seja um policial incorruptível, mostra um comportamento bastante discutível no trato com sua companheira.
Essa longa introdução serve, justamente, para deixar claro que o que vemos em Até os Deuses Erram, filme de 1973, é uma mostra de marcas, de características da filmografia de Sidney Lumet. O filme acompanha o detetive Johnson – interpretado pelo saudoso Sean Connery –, um policial britânico que investiga o desaparecimento de várias meninas. Johnson é perturbado por memórias dos casos tenebrosos com que já teve que lidar. E aqui começa a descida de Johnson ao inferno de Lumet. Atormentado por visões desses casos anteriores que não saem de sua cabeça, o detetive acaba se envolvendo num caso de violência policial, sobre o qual não darei mais detalhes, pois, apesar de ser um filme de 1973, não quero estragar a experiência fílmica de quem quiser procurá-lo para assistir.
A partir desse incidente de truculência do detetive, o que vemos é Johnson se perdendo dentro de seus próprios demônios interiores. E surge outra marca do cineasta que é a construção de uma tensão claustrofóbica. Essa tensão é muito bem executada por meio de ótimos diálogos e movimentos de câmeras usando muito bem ambientes fechados, lembrando até certo ponto a estrutura de teatro de onde se originou a obra, uma vez que o filme é uma adaptação da peça This Story Of Yours, de John Hopkins, que também roteiriza o filme. Podemos ver, por exemplo, em toda a sequência de diálogo de Johnson com a esposa Maureen (Vivien Merchant) o desenvolvimento de um ambiente tenso e bastante desconfortável. A forma como o detetive trata sua esposa é bastante incômoda.
Outra sequência que traz bastante tensão é durante todo o depoimento que o personagem de Sean Connery dá ao detetive superintendente Lieutenant Cartwright (Trevor Howard). Novamente vemos um diálogo, com aspecto teatral, tenso e num ambiente claustrofóbico. Por fim, a própria sequência em que Johnson interroga o suspeito de sequestrar e molestar as meninas é o ápice da tensão claustrofóbica. Em todas essas sequências, vemos Johnson sendo obrigado a se defrontar com seus fantasmas, com seus traumas que o perseguem.
Assim como personagens complexos, contraditórios e problemáticos são uma marca de Lumet, essa tensão claustrofóbica também não é algo isolado na filmografia do cineasta. Em 12 Homens e uma Sentença (1957), o diretor já havia explorado diálogos tensos em um local fechado, trabalhando bem com a mudança de planos e com jogo de câmera. E não é coincidência que ambos os filmes são adaptações de peças. No caso de 12 Homens e uma Sentença, que marcou a estreia de Sidney Lumet no cinema, a obra original era uma peça escrita por Reginald Rose feita para a TV. Outro aspecto em comum com Até os Deuses Erram é que, assim como o filme de 1973 que teve o autor da peça como roteirista do longa para o cinema, Reginald Rose também assina o roteiro de 12 Homens e uma Sentença.
Até os Deuses Erram e todos os outros filmes citados como exemplo aqui neste texto mostram um cineasta mestre em dirigir seu elenco, um diretor que sabia como poucos traduzir o desenvolvimento de seus personagens para o audiovisual. Personagens como Frank Serpico e o detetive Johnson mostram qualidades e virtudes, porém ambos têm, em maior ou menor nível, seus defeitos. Os personagens dos filmes de Lumet são falhos, são contraditórios como nós, são humanos. São frutos da moralidade falida que vemos nas tramas de suas obras. Lumet nos mostra que até os deuses erram, e, quando erram, ele transforma os erros em filmes.
Encontre os demais textos do Dossiê Sidney Lumet em nosso editorial.
¹ Nilvio Pessanha é professor de literatura, crítico de cinema, ‘co-fundador e criador do podcast e site “Cine Trincheiras” ao lado de Iuri Freire