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A voz que resta

Logo no início de “A Voz que Resta”, de Roberta Ribas e Gustavo Machado, o espectador é apresentado a uma tela em forte vermelho, que já é um código inequívoco e já bastante tradicional: paixão, desejo. Ao longo da projeção, à medida que a madrugada que o filme enquadra se prepara para receber as primeiras luzes do sol, essa cor muda para azul. Nesse sentido, isso significará, como também tradicionalmente conhecemos, o arrefecimento de emoções extravasadas ao longo do filme.

Assim como as cores, os demais significados de “A Voz que Resta” são bastante tradicionais e portanto não provocam nenhuma ambiguidade. Por exemplo, estão lá todas as características visuais de uma baita dor de cotovelo: a bebida, o cigarro, a desarrumação, os objetos importantes para o casal tratados de maneira displicente. Igualmente, alguns outros objetos compõem um mundo que não pertence ao presente: a máquina de escrever, ferramenta de trabalho do protagonista; a indefectível fita cassete; a câmera digital de uma geração anterior ao smartfone.

a voz vermelho

Esses elementos compõem o universo visual de “A Voz que Resta” e, diante da economia de elenco, assumem um papel central ao filme . Essa economia faz sentido. O filme é uma adaptação da peça homônima de Vadim Nikitim, monólogo que contava no palco apenas com Gustavo Machado encarnando o jornalista Paulo em noite de bebedeira e melancolia pelo fim do relacionamento com Marina, sua vizinha casada.

“A Voz que Resta” é um filme no passado

Diferentemente da peça, o filme conta também com Roberta Ribas como Marina, que aparece em flashbacks a fim de comunicar o intenso relacionamento do casal antes do término do romance. Observe-se, em relação a isso, a perspectiva do filme toda voltada para o passado: objetos do passado, práticas do passado, imagens do passado, discursos do passado.

Nesse sentido, “A voz que resta” é coerente com o conteúdo de cinema que apresenta ao longo de seus quase 90 minutos de projeção. Ora, o passado é sempre uma dimensão de experiência em que não se espera que aconteça alguma novidade. Tudo já e conhecido, previsível.

a voz azul

É isso o que ocorre em “A Voz que Resta”. Assim como os recursos cênicos parecem já bastante gastos, de tão usados, o discurso e as atitudes do personagem também parecem datados, envelhecidos. Assim, Paulo é um homem rejeitado pela amante que reage como reagem normalmente os homens não acostumados a serem dispensados. Seu discurso é o de desqualificação de sua ex-parceira. Só para ilustrar, até um “puta de cais” temos de ouvir, em algum momento.

Previsibilidade e anacronismo

A questão que fica depois que assistimos a uma hora e meia de um homem se lamentando, lamentos estranhos ao mundo das ideias e das relações de gênero que permeiam o século 21, é a de se um filme como “A voz que resta” ainda faz sentido. Porque é muito lugar-comum, ao fim de uma relação amorosa, o discurso masculino que muda a imagem da mulher. Antes, ela era positivada pelo desejo dos primeiros tempos; agora, é destruída pelo rancor do presente.

Sabemos que os estudos em feminismo têm aberto muito mais a cabeça das mulheres do que dos homens. Muitos deles ainda permanecem em seu lugar de machos donos do mundo, senhores inclusive do tempo que uma relação amorosa deve durar, já que cabe a eles a prerrogativa do rompimento.

A voz amanhecer

Contudo, o que vemos em “A Voz que Resta” é tão anacrônico, que o filme nos faz pensar que talvez tenhamos pegado uma máquina do tempo que nos transportou ao passado, à época das canções de fossa, dos machões de orgulho ferido. Sinceramente, não cabe mais.


Ficha Técnica
A voz que resta (2024) – Brasil
Direção: Roberta Ribas, Gustavo Machado
Roteiro: Vadim Nikitim
Edição: Alexandre Cruz, V.E.S., Roberta Ribas
Fotografia: João Victor Oliveira
Design de Produção: João Godoy
Trilha Sonora: Teco Fuchs
Elenco: Gustavo Machado, Roberta Ribas

 

 

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