Do Sul, a Vingança

No atual cenário do cinema brasileiro, em que produções fora do eixo Rio-SP começam a alcançar reconhecimento internacional, Do Sul, a Vingança surge como um filme que carrega o peso de fazer parte de um movimento maior: o esforço de um cinema regional em ocupar espaços que lhe foram historicamente negados.

 Produzido no Mato Grosso do Sul e com uma trajetória marcada pela superação de barreiras orçamentárias, institucionais e simbólicas, o longa dirigido por Fábio Flecha se apresenta como um faroeste contemporâneo que tensiona gêneros, linguagens e expectativas. A narrativa acompanha Lauriano, um escritor investigativo que entrevista criminosos como parte de seu processo criativo. No interior do Mato Grosso do Sul, ele se encontra com Jacaré, uma figura temida da fronteira e o que começa como um registro jornalístico logo se revela parte de uma trama de vingança ancorada em traumas familiares, corrupção e fantasmas do passado.

A linguagem híbrida como recurso do cinema de gênero

Desde os primeiros minutos, percebe-se o esforço em construir uma linguagem que não subestime o espectador, mas que lhe seja familiar. Há uma busca por tensionar o ritmo, sustentar silêncios e sugerir mais do que mostrar. A mise-en-scène privilegia o tempo estendido, e o filme parece buscar, através da direção e montagem, privilegiar os ruídos naturais e a performance. O filme se posiciona dentro de uma linhagem estética que flerta com o western, mas o faz com marcas próprias, e também com limitações que nem sempre consegue ultrapassar.

O grande desafio está justamente aí: no embate entre ambição e possibilidade. Do Sul, a Vingança se estrutura como uma obra de gênero, mas não se limita a ele. Há momentos em que flerta com o grotesco, outros em que mergulha no drama psicológico e existem até mesmo sequências que se aproximam de uma linguagem simbólica mais próxima do que se habituou em chamar de “cinema autoral brasileiro”. O resultado é um filme em constante oscilação, que fascina por suas tentativas e, por vezes, desorienta por sua instabilidade.

Se por um lado esse jogo de registros cria um dinamismo visual e narrativo, por outro, enfraquece a coesão dramática. Os personagens centrais, como Jacaré e o político vingativo, são construídos a partir de arquétipos poderosos, mas carecem de complexidade no desenvolvimento. A tensão entre o épico e o cotidiano, entre o trágico e o cômico, entre o regional e o universal, nem sempre encontra equilíbrio. É como se o filme estivesse em disputa consigo mesmo, sem decidir exatamente onde deseja pousar.

A fronteira como o lugar e o não-lugar

Outro ponto de tensão é a relação com o espaço. Embora a proposta anuncie uma imersão no universo sul-mato-grossense, esse território raramente se impõe como personagem. A paisagem, ainda que presente, funciona mais como pano de fundo do que como força narrativa. O espaço geográfico, que poderia ser tratado como grande marca regional, muitas vezes se torna genérico, familiar, diluindo a potência imagética que o filme poderia alcançar. Mas o que acontece não é o esvaziamento, mas sim um troca, saem os lugares comuns de imaginar um Brasil interiorano substantivado e entra em seu lugar a fronteira. E por essa ótica, é inegável o valor simbólico da obra. 

Há, claro, um outro gesto importante aqui: o de colocar em circulação nacional e internacional uma produção feita longe dos centros de decisão do audiovisual brasileiro. O filme encontra ressonância principalmente quando assume seu hibridismo, brincando com a estética da televisão, com a retórica dos filmes de ação, com os clichês de gangster e com os desvios do drama autoral. Essa mistura, por mais que às vezes resulte em ruído, também carrega uma identidade mais verdadeira do que muitas tentativas conhecidas de se retratar o interior do país. 

A atuação de Felipe Lourenço como Lauriano é um dos pontos altos. Sua atuação dá credibilidade a um personagem constantemente pressionado por situações cada vez mais absurdas. A direção, apesar dos tropeços, encontra momentos de maturidade ao explorar o contraste entre violência e vulnerabilidade. Sequências específicas, como a emblemática cena do vestido, escapam das amarras do gênero e se colocam como instantes ricos de expressividade semiótica.

No fim, Do Sul, a Vingança é um filme que talvez funcione mais como prenúncio do que como realização. Ainda não é o marco que deseja ser, mas aponta caminhos possíveis. Representa um gesto de ruptura e afirmação: o de que o cinema brasileiro pode, e deve, ser múltiplo, descentralizado e ousado. Há algo de valioso nesse ruído: a tentativa de criar a partir da margem, de improvisar onde não há verba, de insistir onde não há estrutura. E isso, por si só, é política, é estética, é cinema.

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