Ammonite
Última atualização: 04/01/2021
Resumir Ammonite a um “filme LGBT” é simplista, pois a orientação sexual é um dos elementos que definem uma pessoa, mas nunca é o único. Acompanhada a ela, está uma série de aspectos igualmente relevantes, como profissão, classe social e voz. O diretor e roteirista Francis Lee pinta um quadro amplo sobre invisibilização e silenciamento social de mulheres em um mundo governado por homens, dentro do qual insere a questão da sexualidade.
Essa visão ampla cria um filme muito mais rico.
Talento e reconhecimento
A primeira cena de Ammonite é muito simbólica. Um fóssil chega ao Museu Britânico com um bilhete: “Lagarto do mar, encontrado pela senhorita Mary Anning em Lyme Regis”. O curador coloca o fóssil em exposição, removendo o bilhete e colocando uma placa que diz “Ictiossauro de Lyme Regis, apresentado por H. Hoste Henley”.
Esse apagamento é a tônica da vida de Mary (Kate Winslet). Paleontóloga brilhante, é relegada a uma vida de pobreza e insignificância, coletando os amonites que dão nome ao filme, na mesma praia em Lyme Regis, para vender a turistas e sustentar a si e a mãe Molly (Gemma Jones). Seu fóssil pode ir a Londres, mas ela, ou mesmo seu nome, não.
Ammonite e o silenciamento feminino
A Inglaterra do século 19 não era gentil com Mary, mas a vida de Charlotte Murchison (Saoirse Ronan) também era difícil. Seu marido, Roderick (James McArdle), também paleontólogo, contrata Mary para ser sua instrutora por alguns dias. A relação do casal é péssima, com Charlotte manifestando sintomas clássicos de depressão.
Claramente mais interessado em cruzar a Europa em uma “jornada de autoconhecimento”, Roderick não faz nenhuma cerimônia para abandonar Charlotte aos cuidados de Mary. E, por mais que a oferta seja humilhante, a pobreza e a mãe doente forçam Mary a aceitá-la.
A partir daí, Ammonite toma um rumo narrativo que foge do convencional.
Ammonite e a prisão do tempo
O filme não dá essa informação mas, segundo a boa e velha Wikipédia, os amonites são excelentes fósseis de idade. Isso significa que, a partir deles, é possível determinar o período exato de um sítio geológico.
Mary e Charlotte são os “amonites” de seu tempo, retratos de uma era na qual ser mulher representava limitações intransponíveis. Francis Lee não conta uma história sobre amor e sororidade vencendo o status quo, mas sobre a vitória silenciosa – e silenciadora – deste status quo.
Sim, há uma mudança visual no filme conforme a relação das duas se torna mais próxima, representada na paleta de cores mais quentes e nas roupas de Charlotte mais coloridas. Mas também há uma inevitabilidade no destino do casal, representada por uma fotografia repleta de planos fechados, cenários pequenos e constante sensação de que o próprio mundo oprime aquelas mulheres.
Inclusive, não há referências óbvias sobre a tensão amorosa entre Mary e Charlotte antes da segunda metade do filme. Isso mostra como a sexualidade, apesar da clara relevância, não é a única forma de oprimir as pessoas, mas uma dentre muitas. Seria muito mais interessante ver o filme sem essa informação. Mas, mais uma vez, o marketing estragou tudo.
Ammonite está disponível para aluguel no Amazon Prime.
Direção: Francis Lee
Roteiro: Francis Lee
Edição: Chris Wyatt
Fotografia: Stéphane Fontaine
Design de Produção: Sarah Finlay
Trilha Sonora: Volker Bertelmann & Dustin O’Halloran
Elenco: Kate Winslet, Saoirse Ronan, Gemma Jones, Alec Secareanu, James McArdle & Fiona Shaw