A amiga genial: 1ª temporada

Última atualização: 20/05/2022

Ao longo da história do audiovisual, temas recorrentes têm sido ressignificados em diferentes filmes e séries. Sem dúvida, isso ocorre por aprimoramentos técnicos das Artes visuais. Mas também emerge das necessárias releituras de mundo que a sensibilidade e o conhecimento dos roteiristas vão capturando no ar. Essas releituras não raro se fundamentam nos achados de estudos científicos, que a Arte captura e transforma em realizações de imagem, som, atuação…

A amiga genial, consagrada série italiana em cartaz na HBOMax, mesmo com o início ambientado na década de 50 do século 20, retoma temas relevantes com a necessária releitura do século 21. No caso da série, há um tema que permeia os episódios e vai sendo refinado através das temporadas. Ele pode ser resumido no conceito de Retorno do recalcado, cunhado por Sigmund Freud. Contudo, agora, esse tema ganha uma roupagem feminista.

Amiga genial primeira temporada

No site Psicanálise clínica, se lê:

Freud coloca que o recalque é uma resistência da pulsão. Na verdade, tal defesa tende a tornar a pulsão inoperante. Embora inconsciente, a pulsão continua existindo, mas de forma mais organizada, dando início às associações. Na verdade, todos os mecanismos de defesa do indivíduo acabam trazendo um pouco de recalque para si.

Além das pulsões que remetem o recalcado ao prazer, há diversas pressões exteriores que acabam por fazê-lo suprimir suas vontades. É como se a pessoa negasse a existência de tais sentimentos ou emoções para conviver melhor com seus próprios princípios ou dentro de uma cultura.

Além disso, isso pode ocorrer devido a eventos que ocorreram em sua infância, que trazem lembranças que o fazem sentir dor ou vergonha.

A partir do conceito clássico de Freud, A amiga genial discute o recalcado que o patriarcado é capaz de produzir. E que, inevitavelmente, retorna.

Dos livros para a TV

Mas essa não é a única virtude dessa excelente produção, que precisamos assistir em sua inteireza (até agora, três temporadas) para que consigamos reconhecer o mesmo fio argumentativo que a sustenta.

Originalmente, A amiga genial é uma quadrilogia literária escrita por Elena Ferrante, autora italiana que já teve outro trabalho recentemente transcrito para o audiovisual. Trata-se de A filha perdida, disponível na Netflix, e sobre o qual eu escrevi aqui no Longa História.

Nessas obras, Ferrante se dedica a enfatizar as questões existenciais e sociais das mulheres europeias. Todas, independente da idade e da classe social, capturadas pelo patriarcado de alguma forma. De sucessos editoriais, o audiovisual agora torna as histórias de Ferrante mundialmente conhecidas.

amiga genial Lila e Lenu

Como obra construída em afinação com o século 21, A amiga genial afasta-se não apenas tecnicamente, mas também tematicamente do que foi produzido na época em que sua narrativa se desenrola. No passado, a violência de gênero que a tela mostra praticamente nunca era apresentada diante das câmeras. Mas sabemos que ela era forte e ainda continua existindo por trás delas. Entretanto, hoje conseguirmos nomear aquilo que já acontecia, mas poucos(as) sabíamos identificar. Isso permite a existência de obras como A amiga genial, e também o debate que elas suscitam.

Evidentemente, a série alcançou sucesso internacional não apenas pelos significados e diálogos que propõe. A maneira como eles se oferecem aos espectadores também é primorosa. Sobretudo, a base de conhecimentos subjacente à história como um todo, abarcando todos os personagens numa única imagem mental, garante nossa rápida compreensão e identificação com suas ações e sentimentos.

Um alicerce feminino

Para expressar o isolamento do bairro de Rione Luzzatti, periferia pobre de Nápoles onde os personagens vivem, a série exibe um túnel sob uma estrada de ferro que separa o bairro do restante do mundo. A primeira parada desse mundo é justamente o centro de Nápoles, aonde os personagens vão apenas depois da infância. É importante pontuar que a cidade fica ao sul da Itália, região menos desenvolvida e discriminada pelo rico norte italiano.

Amplamente falando, a imagem que podemos construir acerca da disposição espacial destes diferentes locais – o bairro separado do restante da cidade por um túnel – nos afeta intuitivamente. E essa imagem é feminina.

Ao longo dos episódios, reconhece-se que Rione Luzzatti é um grande útero que se conecta ao espaço exterior pelo túnel. Este, nessa metáfora que estou propondo, é o canal vaginal que permite que as pessoas, passando por ele para sair de lá, efetivamente nasçam para o mundo. Nessa imagem, então, permanecer em Rione Luzzatti é, de alguma forma, permanecer sem brotar, sem florescer, ou qualquer outra ideia que se queira usar sobre isso.

amiga genial túnel

A amiga genial desenvolve a ideia de nascer num sentido para além do biológico: um sentido existencial. Basicamente, é um deslocamento de um espaço restrito para outro mais amplo, através da movimento entre o bairro de origem dos personagens e os lugares para onde eles vão ou deixam de ir. Isso é mantido ao longo de toda a série, de diferentes maneiras. Todos os personagens são afetados em maior ou menor intensidade por essa ideia. Mas ela é mais poderosa e afeta mais fortemente as protagonistas Elena (Elisa Del Genio e Margherita Mazzucco) e Lila (Ludovica Nasti e Gaia Girace), as pessoas mais geniais entre os moradores do lugar.

A amiga genial é sobre potência e recalque

Dentro do bairro, há pessoas que o entendem como contendo tudo o que precisam conhecer nesta vida. Mesmo sabendo que para além do túnel existe um mundo, elas não se aventuram a atravessá-lo. Não é à toa que, da geração anterior à de Elena e Lila, apenas o pai de Elena (Luca Gallone) atravessa cotidianamente o túnel na direção de Nápoles, em cujo fórum trabalha. E, talvez por isso, apenas ele compreende a necessidade de estudo para os jovens e deseja que a filha tenha uma vida melhor que a dele.

Os outros da geração anterior às meninas e seus amigos, namorados e vizinhos reiteram seguidamente, por razões pertinentes à sua classe, e também por ressentimentos pessoais, o modo de vida do lugar como um valor moral. Por exemplo, a mãe de Elena (Annarita Vitolo), analfabeta e invejosa da inteligência da filha, não compreende seu desejo de estudar, e sai derrotada do embate com o marido pelo destino da menina.

amiga genial Lila

Mesma sorte não teve Lila. Seu pai (Antonio Buonanno) absurdamente ignorante não é sequer capaz de reconhecer alguma inteligência na filha que aprendeu a ler sozinha e desenha sapatos de vanguarda. Mas ele não é o único: a ignorância de muitos moradores do bairro é uma forte justificativa para que permaneçam lá indefinidamente.

Porque seguimos vivendo sem ter de fato nascido?

Através da poeira que os carros levantam do chão batido, a primeira temporada de A amiga genial vai propondo hipóteses sobre por que alguns personagens permanecem ali, imóveis por toda a vida. Ou, na metáfora que proponho, por que permanecem sem efetivamente nascer. A pobreza do lugar é acentuada pela fotografia em tons frios, que iguala a todos numa mesma precariedade. Entretanto, essa pobreza não se limita ao material.

Em resumo, essas hipóteses se concentram no ressentimento e no poder, em homens e mulheres. Por exemplo, os capítulos iniciais da temporada descrevem a história de Alfredo Peluso (Gennaro Canonico). Ele alega ter sido roubado nos negócios por um dos patriarcas ricos do bairro. Passou os anos seguintes queixando-se publicamente do que sofreu, sem conseguir recuperar-se financeiramente. Esse rancor o mantém no mesmo e exato lugar existencial em que seu malfeitor o colocou. Posteriormente, seus filhos o seguem no mesmo sentimento, o que também os manterá cognitivamente em Rione Luzzatti pela vida toda.

amiga genial elena

Outro exemplo é o da mãe de Elena, que reage violentamente a cada iniciativa de crescimento intelectual da filha. Seu discurso sobre isso ora é o de desqualificar o desejo de Elena, ora o de enaltecer a si mesma como dona de casa. Porém, é a única personagem, entre os que ficam presos a Rione Luzzatti, que manifesta o conflito causado por seus desejos de potência frustrados. Isso a humaniza e nos faz torcer por ela e compreender seu comportamento às vezes paradoxal.

Motivações para assistirmos à segunda temporada

O pior caso de estagnação existencial é o do pai de Lila, que exerce com força bruta o pequeno poder de que o cientista político Miguel Lago fala em A linguagem da destruição. É poder garantido pelos governos autoritários àqueles que esses próprios governos expropriaram até não poder mais. Trata-se do poder do subalterno sobre aquele que lhe é confiado, e que por isso é mais subalterno ainda.

Junto com o rancor, o exercício do poder é o elemento que segura os moradores de Rione Luzzatti grudados ao bairro ao ponto de quase, assim como as árvores, criar raízes ali dentro. Aliás, o bairro se resume a um conjunto residencial, não há nenhuma árvore por lá. Talvez as árvores sejam seus próprios moradores.

amiga genial leitura

Ao imaginarmos isso, podemos nos perguntar qual é a força capaz de fazê-los sair de lá, não apenas fisicamente, mas também existencialmente. O que sabemos, ao fim da primeira temporada, é que a proibição do estudo paralisa a vida de Lila de uma maneira já presente em sua infância.

Saber como essa marca se impõe sobre o desejo da moça, e também sobre o desejo de Elena, cuja existência está amalgamada à da amiga, entender quais forças as moverão, e quais recalques as paralisarão, é motivação mais do que suficiente para assistirmos à segunda temporada.


Ficha Técnica
L’amica geniale (2018) – Itália
Direção: Saverio Costanzo
Roteiro: Saverio Costanzo
Edição: Francesca Calvelli
Fotografia: Fabio Cianchetti
Design de Produção: Giancarlo Basili
Trilha Sonora: Max Richter
Elenco: Margherita Mazzucco, Gaia Girace, Elisa Del Genio, Ludovica Nasti, Annarita Vitolo, Antonio Buonanno, Luca Gallone

Publicado Por

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *