A arte de amar
Última atualização: 28/01/2022
Entre as qualidades que espero de um(a) bom(boa) diretor(a) de Cinema, sempre incluo a de reconhecer quando está diante de uma história poderosa que, portanto, se baste e se integre por si. E, por isso, não utilizar artifícios e exageros que possam obscurecer ou distorcer a força dos fatos que o espectador está testemunhando. Essa qualidade está presente no trabalho da polonesa Maria Sadowska, que dirigiu o ótimo A arte de amar (2017), disponível na Netflix. Sadowska contou com um material narrativo rico e com artistas comprometidos com a história que estavam ajudando a contar.
O filme nos apresenta e narra a história de Michalina Wislocka, ginecologista polonesa. Ao escrever e publicar o livro homônimo ao filme, Wislocka revolucionou o pensamento sobre sexo na Polônia da década de setenta do século passado. Naquela época, o país sufocava sob a hipocrisia imposta pela igreja católica e pelo partido comunista, defensores da moral e dos bons costumes nos moldes misóginos da tradição judaico-cristã.
Sadowska opta por dividir a história de Wislocka em dois blocos. No tempo de duração do filme, se desenvolvem paralelamente. Mas seus conteúdos convergem para se encontrar justamente no momento em que a personagem inicia a escrita do seu livro. Dessa forma, o filme nos conta como a vida de Wislocka se desenrolou a fim de que a ideia para o seu livro fosse materializada. E, tendo ele sido escrito, quais foram os desafios encontrados e vencidos – e com a ajuda de quem – para que ele pudesse ser publicado e lido por milhões de poloneses.
Falando de feminismo sem usar a palavra
O espectador só tem a ganhar com as escolhas artísticas de Sadowska. Com isso, ele acompanha a história de uma mulher incomum e inspiradora, capaz de reconhecer seu valor social, superar as crises pessoais e levar a cabo projetos de vida relevantes. Tudo isso acontecendo num país mergulhado primeiro na dominação nazista, e depois na imposição comunista e católica sobre os aspectos mais íntimos da vida das pessoas. A palavra “feminismo” não é pronunciada uma única vez no filme. Mas Wislocka é uma mulher consciente de que uma sociedade falocêntrica obriga as mulheres a serem criaturas do lar e reprodutoras no modo linha de montagem.
Wisloka é uma pesquisadora talentosa e sensível ao drama histórico de ser mulher. Em sua vida profissional, ela reconhece com precisão o fato de que, para que os bebês produzidos tenham a garantia de propriedade do pai, o prazer sexual é negado à mãe. Por isso, qualquer que fosse a queixa de suas pacientes, elas não saíam do consultório sem alguma demonstração prática, por mais heterodoxa que fosse, sobre os poderes do clitóris e os efeitos do orgasmo para a saúde e a felicidade feminina.
Outra coisa que o espectador ganha é o fato de acompanhar a história de uma pessoa que vai se constituindo a partir dos conhecimentos e experiência profissional que acumula. Mas, igualmente, amadurece por meio das pessoas que conhece e ama, e por elas também sendo amada. A personagem Michalina Wislocka é uma mulher que, na juventude, acreditava que as sensações do corpo não eram importantes. Contudo, na maturidade, descobre o amor e o prazer. Essa conquista pessoal é determinante da sua transformação profissional e do seu desejo de partilhar suas descobertas com as outras mulheres. Mas, se os homens também se beneficiarem com isso, tanto melhor…
Uma jornada libertadora de si e dos outros
O filme dialoga com o pensamento feminista contemporâneo e sua ideia de emancipação não apenas das mulheres, mas também dos homens. Com efeito, eles também acabam sendo castrados por uma ideologia machista, que lhes cobra desempenhos de masculinidade de que quase nunca são capazes, ou mesmo desejam efetuar. Nesse sentido, é bonito e significativo o fato de que, no filme, foi um homem quem acompanhou Wislocka no reconhecimento da dimensão libertadora do seu trabalho em prol do orgasmo feminino, não apenas como uma pedagogia da felicidade familiar, mas também como a pedra de toque do autoconhecimento e da liberdade sexual da mulher.
Além disso, há ainda um terceiro ganho. É o de reconhecer o que caracteriza uma pessoa que se descola das determinações sociais de pensamento e ação. Ela desenvolve um raciocínio intelectual absolutamente independente. Além disso, torna-se capaz de resistir às forças em contrário, que invariavelmente questionam a sanidade mental e o caráter de uma pessoa que não atenda às expectativas patriarcais e capitalistas de existência.
Longe de ser o que diziam sobre ela, a personagem Michalina Wislocka era uma pessoa genuinamente preocupada com as outras e consciente da contribuição relevante do seu trabalho para a sociedade polonesa. “Você já teve um orgasmo?” “você usou preservativo?”, ela perguntava, ajudando as mulheres a ter prazer sem os fardos que o sexo acarretava a elas.
Por estar num patamar superior de pensamento social, Wislocka era movida pelo impulso de fazer um bem verdadeiro. Assim, era incapaz de qualquer julgamento de valor sobre absolutamente qualquer prática sexual. Sem dúvida, era isso que a tornava tão subversiva, e, ainda hoje, em 2022, de novo um tempo de reacionarismo e de pruridos moralistas e ridículos, Wislocka, seu livro e o filme de Sadowska são capazes de provocar escândalos entre os “cidadãos de bem”.
Um filme à altura da biografada
Uma história tão poderosa precisava apenas de ações artísticas sutis que não atrapalhassem sua potência afetadora. E essa é a escolha de Sadowska. Assim, para descrever a personalidade agentiva e perseverante de Wislocka, A diretora conta com o apoio do talentoso roteirista Krzysztof Rak. Rak é roteirista de Deuses, dirigido em 2014 por Lukasz Palkowski e um dos maiores sucessos de público da história do Cinema polonês.
O diretor de fotografia Michal Sobocinski, por sua vez, ajuda Sadowska a construir um filme tão iluminado quanto sua protagonista. Na Polônia do filme, sempre é verão, e os dias são longos e ensolarados. Sob o mesmo ponto de vista, os figurinos de Ewa Gronowska acompanham as mudanças de comportamento e o amadurecimento sexual de Wislocka. Inicialmente, ela se veste em tons pastéis. Depois, a descoberta de seu próprio prazer se materializa em roupas mais coloridas e floridas.
Além dessas ações, a atuação vigorosa e perspicaz de Magdalena Boczarska contribui decisivamente para a beleza do filme. Com sua ajuda, Sadowska revela com seu filme uma mulher brilhante, de pensamento acelerado, inquieto e incansável. Admiramos uma mulher que nos aparece grandiosa em plano plongée e contra um céu azul. Acompanhamo-la em alguns planos-sequência que nos incluem na cadeia interminável de suas ideias. Nelas, salta aos olhos sua capacidade de mesclar descobertas pessoais com o desejo de auxiliar outras mulheres a também descobrirem a si mesmas.
Por mais filmes sobre mulheres revolucionárias
A arte de amar é um filme necessário num tempo em que retrocedemos nos valores éticos e morais e tememos a perda de direitos sociais alcançados apenas recentemente, em virtude de forças sinistras que associam o mundo neoliberal à repressão sobre as mulheres, os não-brancos, os da comunidade LGBTQIA+ e os mais vulneráveis economicamente. Filmes assim fazem nascer o desejo de que haja, também no Brasil, mais filmes sobre grandes mulheres brasileiras. Pelo menos três já há: Zuzu Angel, de Sérgio Resende (2006), Elis, de Hugo Prata (2016), e Nise, o coração da loucura, de Roberto Berliner (2016), entre alguns outros. Mas, evidentemente, ainda há muitas outras grandes brasileiras cujas histórias estão para serem contadas.
Esta é uma das tarefas sociais do Cinema: manter vivas as ideias e o desejo de mulheres extraordinárias como Michalina Wislocka, Nise da Silveira, Elis Regina, Zuzu Angel, Marielle Franco e muitas outras. Guardemos na mente e no espírito que as conquistas que melhoram o mundo são realizadas por pessoas como elas, e não por quem detém o poder ilegitimamente.
Sobre A arte de amar, vale a pena também ouvir o podcast sobre o filme.
Direção: Maria Sadowska
Roteiro: Krzysztof Rak
Edição: Jaroslaw Kaminski
Fotografia: Michal Sobocinski
Design de Produção: Wojciech Zogala
Trilha Sonora: Radzimir Debski
Elenco: Magdalena Boczarska, Piotr Adamczyk, Karolina Gruszka, Kamila Kaminska, Danuta Stenka, Tomasz Kot
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