A Colina dos Homens Perdidos | Dossiê Sidney Lumet
¹Por Deivid R. Purificação
Última atualização: 02/06/2024
A Colina dos Homens Perdidos (The Hill, 1964)
Roteiro: Ray Rigby, R.S. Allen
Elenco: Sean Connery, Harry Andrews, Ian Bannen
Lançado em 1965, A Colina dos Homens Perdidos é até hoje um dos melhores exemplos de inferno retratados no Cinema, mesmo que, a princípio, o filme não seja exatamente sobre isso. O longa abre explicitando o sofrimento contínuo através de uma subida vagarosa de um preso num pequeno monte, carregando um saco. Quando ele chega ao topo, temos a revelação de que o conteúdo é apenas areia, e, ao despejá-la, o prisioneiro apenas aumenta o sofrimento do próximo a fazer a subida. Logo em seguida, ele desmaia de exaustão e é sucedido por outro preso fazendo a mesma coisa.
A escolha de Sidney Lumet para essa como a primeira cena do filme não parte apenas da intenção de ambientar o espectador no ambiente desolador da prisão, mas também de criar uma ideia de um sofrimento eterno que pode ser encarado como um paralelo ao mito de Sísifo, condenado a subir uma rocha que rola para baixo toda vez que alcança o topo, numa condenação eterna para pagar por seus crimes. E, assim como Sísifo, o novo grupo de presos protagonistas do longa paga por seus crimes na pequena prisão para soldados britânicos no deserto da Líbia.
Há uma constante sensação de asfixia que permeia todos os 123 minutos da projeção, ceifando cada um dos homens aos poucos. Lumet enfatiza isso através de uma mise en scène bem claustrofóbica, usando planos conjuntos e a alta profundidade de campo como seus maiores trunfos para tensionar tanto personagens quanto espectadores.
É comum nas cenas os personagens estarem enquadrados sempre no centro do frame. entre guardas, grades ou as próprias paredes da prisão. Isso quando a direção de fotografia de Oswald Morris não utiliza os rostos dos atores de perfil em primeiro plano para enfatizar a dinâmica de poder exercida pelos guardas sobre os presos, fazendo com que estes últimos pareçam menores em cena. Algo que também acontece durante os diálogos, num jogo de plano e contraplano em que as figuras de poder são filmadas em contra-plongée, dominando as composições com sua fisicalidade expandida.
No primeiro parágrafo do texto, falei sobre o filme retratar um dos melhores infernos do cinema, e até agora descrevi como tudo é opressivo, mas não exatamente infernal. Então por que escolhi tal palavra para descrever o trabalho de Lumet?
Bem, além da associação óbvia do calor do deserto com a condenação eterna cristã, algo que o trabalho de cabelo e maquiagem transmite muito bem, sempre cobrindo os personagens com terra ou os encharcando de suor em toda cena, a trama em si existe num imperativo categórico moral tipicamente religioso. Os homens enviados para a prisão foram condenados igualmente por seus “crimes”, mesmo que muitos deles não sejam falhas fatais, mas sim desvios da conduta moral da época.
King (Ossie Davies) vai preso por furtar garrafas de álcool, recebe a mesma condenação que um traidor da pátria ou traficante de mercadoria, e sofre o dobro de ambos, pois cometeu um crime ainda pior aos olhos brancos moralistas dos soldados: ser negro. A prisão infernal não condena apenas a ação, mas valida o moralismo hegemônico do país.
Do outro lado, o personagem vivido por Sean Connery é tido como um pária por ter esmurrado um superior que ordenou seu batalhão para a uma missão suicida por puro sadismo. Independente da intenção e da finalidade da ação, a penalidade é a mesma: o sofrimento eterno sisifiano no escaldante deserto, sem escapatória e sem salvação, e a simples reação ou tentativa de fuga da violência só mergulha mais os condenados em suas penas.
Subindo e descendo o monte com areia, aumentando ainda mais o caminho para os seguintes, tornando ainda maior a colina para todos os homens perdidos.
Encontre os demais textos do Dossiê Sidney Lumet em nosso editorial.
¹ Deivid R. Purificação é fotógrafo e morador de Diadema. Formado em operação de câmera, dirigiu o curta “Diadema em Fluxo”, e co-dirigiu episódios da webserie “Uma Drag em Mim”. É cinéfilo assíduo desde que se entende por gente e um amante da nona arte. Se interessa pela linha de pensamento de David Lynch, que acredita no potencial onírico das artes. Idealizador e crítico do Podcast “Pinguim Dançarino”, que discute a linguagem das produções audiovisuais.