A História do Palavrão
Última atualização: 19/02/2021
A Netflix lançou uma série muito bem-humorada chamada A História do Palavrão. Aqui faz sentido mencionar seu título original, em inglês: History of swear words. Ora, “swear” significa “jurar”, “prometer”, mas também “praguejar”, “blasfemar”. Essa informação já dá uma ideia da riqueza semântica que os palavrões do inglês apresentam, para o bem e para o mal. E, inegavelmente, o que é bem e o que é mal não é apenas uma questão pessoal. Diz respeito às sociedades como um todo.
A riqueza dos palavrões é explorada na série por comediantes estadunidenses, mas também por intelectuais de várias áreas do conhecimento. Todos recepcionados por um Nicolas Cage inspiradíssimo, elegantérrimo e se divertindo à beça num cenário sóbrio e elegante. O resultado é um equilíbrio perfeito entre ciência e comédia.
Evidentemente, os palavrões do inglês não encontram traduções e usos exatos em português – e em nenhuma outra língua, aliás. Por isso, assistimos à série sobre os contextos e efeitos de uso de palavras como “fuck”, “shit”, damn, “pussy” e “dick”, imaginando como os palavrões do português, igualmente polissêmicos, se comportam.
Palavrões revelam as dinâmicas das línguas e das sociedades
Porém, enquanto esperamos uma versão brasileira da A História do Palavrão (em Portugal, naturalmente, o acervo de nomes feios não é o mesmo), vejamos o que a série da Netflix nos traz de interessante, e o que podemos aprender sobre a linguagem enquanto assistimos a ela. A analogia com o inglês nos ajuda a imaginar como se comporta a representação linguística de nossa escatologia, nossa moral e nossos tabus.
Em primeiro lugar, muitos teóricos (eu entre eles) afirmam que as palavras não apenas dão nomes às coisas – e, para coisa, aqui, estou me referindo a tudo o que existe em qualquer dimensão de realidade. Elas também oferecem informações sobre seu valor social. Ou seja: cada nome não apenas designa, mas impregna de valores aquilo a que se refere. Essa ideia ajuda a explicar por que, para uma mesma coisa, às vezes existe uma série de nomes. Cada um desses nomes atribui à mesma coisa, em diferentes contextos, valores sociais específicos.
Palavrões são o caso extremo desse fenômeno. Eles dizem respeito muito mais a valores do que a nomeações. Eles qualificam as coisas, em vez de lhes apontar as características. Por isso é que um mesmo palavrão pode até substituir o nome de uma infinidade de coisas muito diferentes. O que interessa comunicar é o valor, e não a designação. Por exemplo: em “Me dá essa m… aí”, o falante está mais interessado em comunicar o que acha sobre a coisa de que está falando do que informar o que ela de fato é. Em virtude disso, usar recorrentemente o palavrão em lugar do nome da coisa acaba colando a ela um valor. O mesmo raciocínio pode se aplicar a apelidos.
A linguagem revela as transformações morais ao longo da História
Em segundo lugar, todas as palavras têm uma história. Uma história antiga, mas também uma história recente. Dos palavrões, diz-se que eles geralmente nascem de forma aleatória, sem qualquer sinal de que assumirão sentidos especiais no futuro. “Dick”, por exemplo, nasceu como apelido do apelido: Richard > Rick > Dick. Mas acabou, com o tempo, assumindo a designação do órgão sexual masculino. E, mais recentemente, provavelmente por conta da rejeição popular ao ex-Presidente Richard “Dick” Nixon, passou a ser usada para homens de caráter duvidoso.
Mas essa é a história de um dos palavrões do inglês. O (mais ou menos) análogo brasileiro de “dick” para maus caracteres – babaca – certamente terá uma história muito diferente, e certamente há pesquisadores brasileiros interessados em rastreá-la. Aliás, o termo “babaca” é usado, na tradução brasileira das falas dos apresentadores e depoentes de A História do Palavrão, para traduzir diferentes palavrões do inglês. De fato, traduzir é muito mais mergulhar numa rede de significados entrecruzados do que outra coisa.
Isso é uma das evidências de que não há correspondência linguística entre os idiomas em diferentes sociedades: “Eu gosto da ideia de me referir a uma cultura pelos palavrões únicos dela. A gente xinga com o que se importa”, diz o ator Isaiah Whitlock Jr.. Sobre essa fala, é importante dizer que o que acontece com os palavrões acontece com todos os componentes de uma língua.
A História do Palavrão: aquilo que não conseguimos discutir a sério
De todo modo, numa comparação entre inglês e português, há muito em comum. Palavrões, no geral, referem-se a preconceitos e tabus. Tanto lá quanto cá, nomes feios com significados femininos servem indistintamente para a depreciação de homens e mulheres. Numa sociedade machista, feminilizar é desqualificar. Igualmente nos Estados Unidos e no Brasil, a genitália humana é fonte de enriquecimento da língua. Há uma infinidade de nomes sobre nossos órgãos reprodutivos, como vários comediantes brasileiros já registraram.
Essa semelhança traz embutida uma ideia interessante: xingar alguém com um nome feminino depreciador pode soar como ofensa em nossa sociedade. Mas convenhamos que é muito mais pesado ofender e desqualificar uma pessoa sem usar palavrões. Os palavrões usados para ofender são violentos de uma maneira aguda, pontual. Dependendo do contexto, eles se empacotam numa agressividade que permite à pessoa ofendida reagir e se defender imediatamente.
Além disso, como os significados dos palavrões são variados mas são fixos, o que eles transmitem não é ambíguo. Mas ofensas ditas sem eles são sempre comunicações mais elaboradas, e por isso mais potentes em sua carga cruel: “Sua mensagem foi brutal, mas a entrega foi gentil“, como cantou Amy Winehouse.
Xingar para aliviar a tensão
Não é à toa que, para falarem sobre o tema, os produtores de A História do Palavrão optaram pelo tom de humor, juntando comediantes a pesquisadores no assunto para aliviar a tensão que eles provocam. Para ajudar nesse alívio, o palavrão, segundo os depoentes da série, diz mais sobre quem o pronuncia do que seus destinatários: não raro se presta a desabafar e aliviar tensões, quebrar o gelo na comunicação, buscar intimidade.
Argumento semelhante pode ser empregado para temas tabus, como determinadas funções fisiológicas. As genitálias e o aparelho excretor recebem tantos nomes quantos são numerosos os contextos em que precisamos falar de sexo e escatologia sem corar de vergonha. Muitos desses nomes são infantilizados, para os usarmos com crianças. As funções dos órgãos que eles designam recebem “apelidos”, por assim dizer, para tratarmos deles com desconhecidos ou pessoas que nos constrangem.
No fim das contas, a infinidade de contextos ajustáveis a tantas palavras nos mostram como atividades orgânicas como a excreção e a sexualidade são importantes para nós. É… Freud tinha razão.
O que A História do Palavrão não disse
Mas ainda há mais a dizer sobre palavrões além da história das sociedades. Eles também nos ajudam a conhecer nossa língua. Se consultarmos alguns linguistas brasileiros, concluiremos que o que chamamos de palavrões nem sempre se encaixa na definição de palavra. Muitos usos de palavrões se encaixam na definição de frase dada pelo linguista Joaquim Mattoso Camara Jr. Para o autor, uma frase não se define pelas palavras que inclui, mas sim por ter uma estrutura entonacional delimitada e um propósito comunicativo preciso.
Assim, o palavrão que você solta quando bate com o dedinho do pé na quina da parede é uma frase completa. Seu padrão entonacional é inequívoco, e ela comunica perfeitamente o que você está sentindo naquele momento: “mais uma vez essa #%$@&* dessa parede no caminho do meu pé!”
Flávia Carone, outra linguista, complementa a opinião de Mattoso Camara mostrando que os palavrões são um tipo de frase chamado interjeição, que é a forma mais simples de frase. Não precisa necessariamente apresentar a estrutura sujeito – predicado que as frases mais complexas têm. Aliás, não precisa nem se encaixar nos padrões fonológicos do português, como muitos dos sons esquisitos que emitimos quando algo nos irrita a ponto de nos impedir de dizer algo minimamente inteligível.
Brasileiros também apreciam o assunto
Podemos especular o que nos leva a proferir palavrões em vez de frases que comuniquem com exatidão o que pensamos e sentimos. Também podemos questionar se um palavrão jamais poderá ser substituído por outra frase. Tópicos como esses podem ser assunto para uma série brasileira. Referência bibliográfica já temos: é o já clássico História do palavrão e termos afins, de Mário Souto Maior. Sua publicação é de 1974, portanto ele não inclui os novos palavrões do português brasileiro. Mas tem a vantagem de cobrir o vasto território nacional, oferecendo informações sobre diferentes palavrões usados no Brasil inteiro.
A curiosidade sobre esse dicionário é que os órgãos da ditadura militar o censuraram (sinal de que quem estava no poder no Brasil naquela época, entre outros defeitos, não tinha nenhum senso de humor…), o que atrasou sua publicação até 1980. Naturalmente, seu lançamento foi um sucesso retumbante, e sua leitura comprova que, para falarmos besteira, não contamos apenas com palavras e frases. Já é folclore a hipótese de que, em português, qualquer estrutura sujeito + verbo + objeto direto sempre carrega um duplo sentido: expressões “dar a maricotinha” e “fechar a cancela” são exemplos típicos disso. Interessado no que elas significam? Leia lá!
A História do Palavrão já está disponível na Netflix. Assista clicando aqui.
Direção: Christopher D’Elia
Roteiro: Bellamie Blackstone & Joel Boyd
Fotografia: Colin Arndt, David Ortkiese e Todd Rawiszer
Design de Produção: Milena Selkirk
Trilha Sonora: Adam Blau (tema de abertura)
Elenco: Nicolas Cage, Nikki Glaser, London Hughes, Elvis Mitchell, DeRay Davis, Melissa Mohr, Kory Stamper, Joel Kim Booster, Jim Jefferies, Sarah Silverman & Nick Offerman