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A máquina do tempo

Nem sempre quem define os títulos brasileiros para filmes estrangeiros é feliz em suas escolhas. Mas, de todo modo, sempre há vários títulos muito bons. Um deles é “A Máquina do Tempo” (2022), primeiro longa-metragem para o cinema do irlandês Andrew Legge. Com certeza, até assistirmos ao filme, o título original “Lola” não desperta nada em nossa imaginação. Isso é diferente da gigantesca memória ficcional que o termo “máquina do tempo” nos desperta.

Contudo, o nome em português é bem mais interessante do que parece de imediato. Geralmente, assistimos a narrativas em que as tais máquinas do tempo nos transportam para o passado ou para o futuro. No caso do filme de Legge, o futuro é que é trazido à casa das irmãs Thomasina “Thom” (Emma Appleton) e Martha “Mars” (Stefanie Martini) Hanbury. Juntas, elas inventaram uma máquina que captura ondas de rádio do futuro em uma tela redonda, transformando-as em documentos visuais e sonoros de daquilo que ainda vai acontecer.

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Então, ao contrário do que comumente vemos, no caso de “A Máquina do Tempo” são os fatos que viajam, para conferir às irmãs Hanbury uma visão presciente que pode ser usada de todos os modos possíveis, para o bem e para o mal. Contudo, talvez o filme trate menos de inovações tecnológicas do que das armadilhas que o ser humano pode criar para si mesmo se não observar as possíveis consequências de seus atos.
Mas posso ir além: há mais camadas temáticas em “A Máquina do Tempo”. Quase todas são despertadas pelo engenho das irmãs, e percorrem caminhos que tornam o filme muito mais interessante. E, por que não dizer, de uma beleza singular.

“A Máquina do Tempo” é uma fábula não-prototípica

De início, “A Máquina do Tempo” lembra os filmes de ficção científica que sugerem bem mais do que explicitam acontecimentos extraordinários. Estes situam-se no extracampo e, também, na imaginação dos espectadores. “Primer” (2004), de Shane Carruth, “A Outra Terra” (2011), de Mike Cahill, e “Coerência” (2013), de James Ward Byrkit talvez sejam os exemplos mais conhecidos dessa linha. De certa maneira, “A Máquina do Tempo” conversa com esses filmes, porque emprega um mínimo de efeitos especiais para contar sua história fantástica. Ao mesmo tempo, mantém o foco do espectador sempre nas ações e sentimentos de suas protagonistas, bem como nas consequências do que fazem.

Por causa de uma mínima intervenção fantástica, o suficiente para despertar a imaginação e desencadear a trama, não sei se seria apropriado chamar “A Máquina do Tempo” de distopia. Se excluirmos a máquina singular batizada de “Lola”, nome da mãe das irmãs, o que temos é um filme sobre como o curso do que fazemos define o futuro, para o bem e para o mal, para nossa vida individual e também para uma coletividade.

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Eu diria mais que se trata de uma fábula não prototípica. Sem animais como personagens, mas com uma natureza fortemente alegórica, e também aberta a muitas leituras que conduzem a diferentes “morais”. Esse é um feito e tanto para um filme com menos de uma hora e vinte minutos de duração.

Um legado em forma de filme

Porém, nem a moral de “A Máquina do Tempo” é prototípica. Escalando suas pequenas filhas Theodora e Francesca para retratar as irmãs Hanbury ainda meninas, Andrew Legge abre espaço para que pensemos em “A Máquina do Tempo” como uma obra de arte criada como um presente para elas. Um legado que um amoroso pai contemporâneo concede às filhas.

Fora das telas do Cinema, o futuro que vemos diante de nós é sombrio, e nós mesmos o criamos. Além disso, não temos mais como garantir que nossos descendentes tenham uma vida melhor do que a nossa. Como poderemos nos desculpar com eles pelo planeta em frangalhos, quentíssimo, desértico e miserável que estamos permitindo ser entregue às novas gerações?

irmãs

Existe uma simetria cognitiva coerente em “A Máquina do Tempo” que o torna um filme tão belo, que nem nos importamos com a dificuldade em identificar todos os elementos dos cenários e todos os personagens, embora alguns focos mais significativos estejam lá. Legge usou câmeras e alguns outros equipamentos da década de trinta do século passado para filmar. Daí o estranhamento que temos diante das imagens bastante distantes daquelas a que estamos acostumados no Cinema atual.

Quebrando a linearidade do tempo

Esse movimento de forma é simétrico ao funcionamento da própria Lola, que traz o futuro até nós. Através das imagens de equipamentos de quase cem anos atrás, Legge, analogamente ao que Lola dá aos personagens, traz o passado até nós. Essa é outra das belezas de “A Máquina do Tempo”: explorar até o último momento a quebra de linearidade do tempo, algo que toda Arte, principalmente o Cinema, pode nos proporcionar.

Essa quebra de linearidade se acompanha de uma diversidade de informações que atraem diferentemente as irmãs Hanbury. Isso permite com que as observemos como duas faces de uma mesma moeda. Há a face pragmática e calculista, imaginando o futuro como um arranjo de articulações políticas e econômicas. Mas há a face idealista, que imagina a humanidade também composta do que vamos inventando em termos de Arte e cultura. Ações em um campo afetam o outro e vice-versa, portanto nenhuma face pode ser esquecida.

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Mas, esta parece ser a tese de Legge, só a Arte consegue trazer o equilíbrio entre as forças que regem a construção do mundo. Por isso a ela deve ser dada a precedência na tomada de qualquer atitude que acarrete transformações coletivas. Sabemos que não é isso o que acontece. Mas, de todo modo, em tempos de insegurança sobre nosso futuro, esta parece ser uma das lições mais sensatas que um pai pode dar a seus filhos.


Ficha Técnica
Lola (2022) – Irlanda, Reino Unido
Direção: Andrew Legge
Roteiro: Andrew Legge, Angeli MacFarlane
Edição: Colin Campbell
Fotografia: Oona Menges
Design de Produção: Ferdia Murphy
Trilha Sonora: Neil Hannon
Elenco: Emma Appleton, Stefanie Martini, Theodora Brabazon Legge, Francesca Brabazon Legge

 

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