
Ainda Não é Amanhã
Escolhi a dedo a imagem destacada para a resenha de Ainda não é amanhã, longa de estreia da pernambucana Milena Times, distribuído pela Embaúba Filmes. A imagem mostra três mulheres pretas, de três gerações diferentes: avó, mãe e filha. Ou seja: uma família igual a milhares de famílias brasileiras contemporâneas. Nessas famílias, os homens estão ausentes, a menos que sejam crianças ou adolescentes. De fato, já não era sem tempo uma produção brasileira focalizando famílias lideradas por mulheres e mães solo. A propósito, o último Censo do IBGE registrou 49,1 por cento das famílias brasileiras com essa composição. Onde estão os pais? Melhor perguntar a eles.
Milena Times enquadra sua família na periferia de Recife, sem cair nos estereótipos de costume. Assim, a avó Rita (Cláudia Conceição) e a mãe Luciana (Clau Barros) trabalham o dia inteiro para que Janaína (Mayara Santos, excelente) apenas estude. Esse é um diferencial raro na juventude preta brasileira, que geralmente trabalha durante o dia e estuda à noite. Entretanto, o fato de apenas estudar não torna Janaína uma pessoa leniente. O filme se inicia com o anúncio de que ela foi agraciada com uma bolsa de monitoria em sua faculdade, o que mostra sua determinação. Janaína e sua família são um refresco sobre o escravagismo que se perpetua no presente brasileiro, e do discurso que considera pessoas pobres como preguiçosas. Era assim que as sinhás e sinhôs do engenho, que nunca trabalharam na vida, qualificavam seus escravos.
A trama que gira em torno de uma personagem como Janaína é uma das marcas notáveis de Ainda não é amanhã. As pessoas geralmente rotulam como irresponsáveis e imaturas as meninas (sempre elas, mas nunca seus parceiros) que engravidam solteiras. O erro de Janaína, porém, foi apenas o de estar no auge da fertilidade.
Ainda não é Amanhã é o filme mais corajoso de 2025
Outra marca notável que Milena Times imprime a seu filme é justamente o que o torna uma obra de arte profundamente corajosa nos tempos do embrutecimento fascista e misógino que estamos a duras penas vivendo. As frentes fascistas invariavelmente investem sobre o corpo feminino com todas as formas de opressão possíveis. E uma das grandes violências praticadas contra as mulheres dos estratos sociais mais vulneráveis diz respeito ao sequestro de seu direito aos próprios corpos quando a gravidez se anuncia.
Um dado interessante do filme é que em nenhum momento Janaína é oprimida diretamente por alguém. Milena Times deixa bem claro que isso não mais é necessário. A profunda angústia, desespero mesmo, que a personagem vive ao longo do filme demonstram isso. Ponto para Mayara Santos, em cujo rosto Times deposita a tarefa de manifestar o processo crescente da trama do filme, entre dois momentos que se repetem rimando no início e ao fim do filme. Nesses momentos, a imagem do rosto de Mayara/Janaína manifesta a transformação pessoal da personagem após o trauma pelo qual é obrigada a passar.
Semelhantemente, não faltam a Janaína pessoas que poderiam lhe prestar solidariedade e socorro para que ela conseguisse seu intento. Mas o filme é fiel à vida e mostra que isso também não faz a menor diferença. O mundo abandona existencialmente as mulheres brasileiras que engravidam fora do modelo patriarcal. Silencia-as e as obriga a vagarem sozinhas mergulhadas em seu sofrimento, vendo a vida pela qual lutaram escorrer pelos dedos.
Estamos no limiar da teocracia
Mas, principalmente, ser um filme sobre uma jovem preta pobre e promissora que engravida é que é o grande diferencial de Ainda não é Amanhã. Apenas engravidar já é garantia de sofrimento, culpa e angústia das mulheres, queriam elas manter a gravidez ou não. Por exemplo, o filme catalão Mamífera (2024), de Liliana Torres, evidencia com brilho essa realidade. Nesse sentido, a diferença entre Mamífera e Ainda não é amanhã é algo que está já no título do filme brasileiro: Mamífera se passa num país em que o amanhã que as mulheres progressistas esperam para o Brasil já aconteceu. Aqui, como sabemos, ainda estamos em um ontem que nos coloca no limiar da teocracia.
Por outro lado, essa teocracia não aparece em nenhum momento no filme. Por exemplo, em Levante (2023), de Lillah Halla, a protagonista não teve a mesma sorte. Mas em Ainda não é Amanhã não há ou pastoras dando lição de moral ou ameaçando com o fogo dos infernos quem interrompe a gravidez. Semelhantemente, o Estado também não está explicitado, nem há qualquer forma de didática. Em nenhum momento alguém aparece brandindo alguma lei antiaborto. Nada disso, porém, precisa aparecer. Milena Times constrói Ainda não é amanhã baseando-se fortemente no conhecimento que temos do Brasil de hoje – e no de sempre, obviamente. Um país cindido que se debate em diferentes temporalidades: uma metade deseja retornar ao passado; outra metade busca um futuro que não consegue muito bem vislumbrar.
O diálogo com nosso conhecimento de Brasil dá sentido ao malogro das tentativas de Janaína para resolver seu problema, inclusive contando inutilmente com o namorado. Igualmente, dá sentido e justificativa para o silêncio sofrido de moça, que, positivamente, não se acompanha de culpa, o que afasta completamente o sucesso do julgamento de qualquer teocrata sobre o trabalho de Milena Times.
Que atire a primeira pedra quem não tiver pecado
A opressão civilizatória sobre as mulheres é tão infinita, que também são infinitas as possibilidades de fazer filmes relacionados à forma como a humanidade nasceu e se desenvolveu sobre os inúmeros desdobramentos da violência primordial dos homens sobre as mulheres. Resenhei alguns excelentes filmes sobre isso, o mais recente deles Babygirl (2024), de Halina Reijn. Todos eles, assim como Ainda não é amanhã, fogem do fetichismo e do moralismo. Com isso, trazem para a tela, em plenitude, a trágica experiência de ser mulher em um mundo que os homens (europeus, principalmente) criaram para serem servidos por elas de todas as formas imagináveis.
Ainda não é amanhã aborda o problema civilizatório de as mulheres historicamente não terem poder sobre seu próprio corpo. Ora, esse tema está presente em inúmeros filmes. O que Milena Times traz de notável é que, presentemente, esse tema está dado como um tabu até nas macro instâncias legislativas e judiciárias do Brasil. O momento não poderia ser mais desfavorável.
Porém, a maneira como Times conta sua história, com personagens potentes, agentivos, com um enredo sem brechas para julgamentos morais, leva aos que, como eu, apoiam a legalização do aborto no Brasil, a questionar qualquer um que venha julgar Janaína, suas decisões e ações: meu querido, atire a pedra que quiser, mas só se você não tiver nenhum pecado.
Ficha Técnica

Direção: Milena Times
Roteiro: Milena Times
Edição: Marina Kosa
Fotografia: Linga Acácio
Trilha Sonora: Nicolau Domingues
Elenco: Mayara Santos, Bárbara Vitória, Clau Barros, Cláudia Conceição