Alma do deserto
Co-produção colombiano-brasileira, “Alma do Deserto” chega aos cinemas do Brasil já premiado nos Festivais de Havana e Veneza. Neste, especificamente, o filme ganhou o Queer Lion, prêmio especial para produções LGBTQIA+, feito inédito para o cinema brasileiro. Anunciado para público e crítica como um filme essencialmente de temática anti-transfóbica, entretanto “Alma do Deserto” acaba por ser mais que isso. Sua breve projeção (87 minutos) expande o cenário de observação do espectador para a dimensão mais ampla da discriminação de grupos socialmente vulneráveis na Colômbia. Estado de coisas, aliás, que também podemos constatar pelo mundo afora.
A ideia do deserto como elemento constitutivo da vida de Georgina Epiayú, pessoa central do documentário de Monica Taboada Tapia, já anuncia a escolha da diretora em não construir um filme que propõe uma específica estrutura de mundo ao espectador. Em vez disso, “Alma do Deserto” é um filme de metáforas, a principal delas explorando os vários sentidos evocados pela ideia de deserto: a solidão, a pobreza, a vulnerabilidade.
Perseguindo coerentemente esses sentidos, Taboada Tapia segue Georgina em sua peregrinação de anos em busca de sua carteira de identidade como a mulher que é, e não como o homem que julgavam que ela seria, a partir de suas características genitais. Não os 45 anos em que na realidade Georgina andou pelas repartições e cartórios, mas sim os últimos anos até que finalmente seu documento definitivo fosse confeccionado.
O deserto como solidão infinita
Com efeito, na primeira parte de “Alma do Deserto”, Taboada Tapia enquadra Georgina em lugares em que ela se acompanha de outras pessoas, por exemplo nas repartições e cartórios onde lhe indicam que seu problema será resolvido. No entanto, sua expressão de desalento mostra que ela sabe que as chances de sair dali com sua carteira são bastante remotas. Nesse sentido, há outras pessoas dividindo o recinto com ela, mas ela em verdade está só. O que supomos como causa dessa solidão, de início, é o fato de que, como pessoa transgênero, ela não contaria com a solidariedade estatal.
Estão claros em “Alma do Deserto” os efeitos deletérios de não possuir uma carteira de identidade. Sem ela, Georgina não pode votar no censo do povo indígena colombiano Wayuu. Aliás, sequer tem o direito de votar. Com o documento provisório que carrega, também não consegue obter ajuda de alimentos do governo. Anos atrás, Georgina passou a usar a carteira de outra pessoa, o que complicou mais ainda a sua vida.
Após a descrição de sua situação, acompanhamos outra peregrinação de Georgina, agora em direção à região onde mora sua família, de quem se afastou em exílio forçado para não morrer nas mãos dos irmãos que não aceitam o fato de ela ser uma mulher. Taboada Tapia acompanha Georgina pela região de La Guajira, terra do povo Wayuu, ao qual ela pertence. Novamente, mesmo que Georgina encontre alguém pelo caminho, essa jornada é percorrida numa solidão que apenas o sol e a areia testemunham.
“Alma do Deserto” é um filme de camadas
A chegada de Georgina ao lugar onde moram seus irmãos faz com que “Alma do Deserto” provoque uma quebra de expectativa em relação a seu conteúdo. Se aceitarmos essa provocação, expandiremos o eixo do filme para uma segunda camada. Esta abarca o universo mais amplo das questões sociais da Colômbia, especificamente a que envolve suas populações indígenas. Aí veremos que não é apenas Georgina que peregrina no deserto. Seus irmãos também penam e peregrinam por não terem um registro civil corretamente confeccionado.
Essa nova camada em “Alma do Deserto” nos sugere que o problema de não poderem se identificar e/ou terem os nomes trocados nos documentos é algo que afeta as pessoas indígenas da Colômbia. Portanto, o fato de Georgina ter usado a identidade de outra pessoa não é a causa de ela agora ter problemas em registrar-se. Ou seja, a burocracia estatal, que frequentemente dificulta aos indígenas colombianos o direito básico de existir, de ter cidadania, não se limita às pessoas transgênero, mas atinge um grande grupo étnico.
Contudo, isso também significa, à medida que vemos Georgina sendo renegada pelos irmãos e sofrendo violências por sua transgenericidade, não existe uma solidariedade étnica que em princípio identificaria Georgina aos olhos dos de sua etnia e provocaria alguma empatia. Ao recusar o pacto da masculinidade, Georgina cometeu um pecado mortal.
Esse pecado piora mais ainda se acrescentarmos uma terceira camada ao filme, esta agora relacionada ao mundo dos fatos ao qual ele se relaciona. Assisti a “Alma do Deserto” na mesma semana em que o governo estadunidense elimina as denominações transgênero de suas Forças Armadas e proíbe que pessoas trans em presídios sejam confinadas junto com aqueles com que se identificam em gênero. Portanto, a solidão desértica de “Alma do Deserto” não atinge apenas a Georgina.
“Alma do Deserto” é um filme épico
A belíssima assinatura musical de O Grivo confere um contorno épico à história e às jornadas de Georgina. A musica a transforma numa espécie de Davi lutando contra um Golias mastodôntico. Esse gigante sabe que apenas precisa permanecer imóvel para que o caos institucional se instale e impeça que muitos colombianos não-brancos permaneçam sem identidade, sem cidadania. Nesse sentido, para Georgina, o caos é dobrado, porque, sendo ela uma mulher transgênero, essa identidade também pode ser negada por ela recusar o gênero que lhe foi imposto quando nasceu.
Esse caos é materializado na parte final do filme, em que as pessoas desejam votar no censo das comunidades indígenas mas não sabem sequer para onde vão. Com toda a certeza, é muito difícil a qualquer latino-americano não pensar que é muita coisa errada junta para ser apenas incompetência.
Por ser um filme em três camadas, “Alma do Deserto” tem um final apenas parcialmente feliz. Uma parte do filme mostra alívio pelo fim da peregrinação de Georgina por uma identidade civil. Ocorre que, assim como a palavra “deserto”, a palavra “identidade” também tem muitos sentidos. Saber disso faz Georgina ainda assim manter sua expressão de desalento, por tantas identidades pelas quais tem de lutar. Sua história épica ainda não terminou, mas agora ela se sente mais fortalecida para seguir caminhando. Torçamos por ela.
Ficha Técnica
Direção: Monica Taboada Tapia
Roteiro: Monica Taboada Tapia
Edição: Will Domingos
Fotografia: Rafael David Gonzalez, Tininiska Simpson
Trilha Sonora: O Grivo
Elenco: Georgina Epiayú