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Aniara

Última atualização: 14/02/2021

Um dos meus prazeres cinéfilos é assistir a filmes que não se encaixam nos padrões narrativos moldados pelos estadunidenses. Esses padrões normalmente se baseiam na esperança de um dia superarmos as limitações humanas de movimentação no espaço-tempo já estabelecidas pelas Leis da Física. Assim, navegaríamos por distâncias medidas em anos-luz pelo espaço infinito, mas dentro do tempo de nossas vidas biológicas.

A subversão das Leis da Física que já conhecemos, um hábito da ficção científica nos moldes estadunidenses, dá a entender que nossa capacidade de negociar com a fragilidade da vida e a certeza da morte não encontra limites.

Entretanto, menos numerosos são os filmes como Aniara, que assumem que, na verdade, estamos à mercê dessas Leis. Deve ser porque eles escancaram a brevidade do nosso tempo de vida diante do impensável tempo do universo. E isso é muito assustador.

Mas é interessante e desafiador construir uma ficção científica que confronta pessoas com mais e menos aptidão para lidar emocionalmente com a vida concreta. Nesse contexto, a constante pode ser nossa insignificância diante do grande tudo-nada que é o universo. Na obra de Pella Kågerman e Hugo Lilja, disponível na Amazon Prime, ocorre exatamente isso. Em Aniara, os personagens são acareados com uma certeza que a vida sem negociações meio que disfarça, maquia: todos nós morreremos um dia. Tal certeza fica mais palpável ainda quando precisa ser vivida fora da Terra, único planeta conhecido cujo ecossistema não nos mata imediatamente.

Definir o que é um planeta significa definir quem somos

Aniara explora e tem como espinha dorsal o sentido de planeta como uma base de conhecimentos. Dessa forma, sua trama se desenvolve em torno do desafio apresentado aos personagens: a transformação da nave em um espaço de vivência. “Criamos um planeta”, diz o capitão. A partir daí, o filme levanta as semelhanças que há entre um planeta conforme entendemos e a nave que confina milhares de pessoas. Os personagens estão quase todo o tempo desatentos ao fato de que a Terra, assim como a nave, também nos confina. E também mal notam que ambos, Terra e nave, são infinitamente pequenos e insignificantes, ambos à deriva no universo sem fim.

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Há que se notar, sobre isso, a absoluta coerência de Aniara em estar descolado de qualquer realidade histórica. Mas isso não significa desconexão: o filme abraça forte a filosofia que salta aos olhos em qualquer tratado científico. Questões sociais-ecológicas humanas, embora evidentes, permanecem em fundo, talvez apenas como gatilhos da narrativa. Em figura, está a provocação sobre quais são as fronteiras de nossa habilidade para lidar com nossa própria finitude e nossa condição paradoxal dentro do universo. Somos singulares, já que ainda não conhecemos outro corpo celeste com as condições de sobrevivência que a Terra nos oferece. Mas também somos imperceptíveis diante dos bilhões de anos-luz estimados pelos físicos e astrônomos como sendo o tamanho do universo.

Tempo e espaço como dimensões sem fronteiras

Sendo Aniara um tratado filosófico, MR (Emelie Garbers) seria uma espécie de personagem-questão análoga ao paradoxo da presença da Terra no universo. MR dispõe de várias alternativas de ação, algumas delas perpetradas por outras figuras à sua volta. Mas sabe que precisa empregar sua própria humanidade como recurso para lidar com a finitude que de súbito lhe é jogada na cara. Ou, melhor dizendo: MR precisa equacionar a contingência da finitude do ser humano com a impalpável infinitude do universo. Porém, o problema de MR não tem solução; é um jogo que de partida ela já perdeu. Mas é nesse fracasso que está a grande ousadia e a razão da existência de Aniara.

Esse projeto ambicioso concretizado com perfeição não se limita ao redimensionamento do espaço para aprendermos a negociar com a morte – e com a vida, obviamente. O tempo da existência humana, medido em décadas, em cotejo com o tempo do universo, medido em bilhões de anos, se integra ao espaço na magnífica imagem da bolha de ar presa no fundo do copo de vidro. “No entanto, ela se move”, como disse Galileu Galilei. Compreender plenamente que essa bolha se movimenta é a exigência que Aniara nos impõe como obra de Arte.

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Faz-se assim o jogo do tempo-espaço. Não como metáfora (outra saída fácil que Aniara recusa), mas como possibilidade de acontecimento num futuro talvez próximo, e bastante possível, por força de circunstâncias que nós mesmos provocaremos. Tarefa, aliás, para a qual já provamos ser mais que competentes. Tempos-espaços da nave, da Terra e do universo, dispostos em diferentes camadas que se replicam. Diferentes dimensões, cujo conhecimento nos permite calcular onde nos encaixamos e nos reconhecemos existencialmente. Dessa forma, compreenderemos qual é o tamanho da importância de amar, construir, fazer planos, imaginar o futuro.

Aniara não satisfaz nossos desejos

A ousadia de ficções científicas como Aniara consiste na coragem de elas não entregarem o que o espectador médio espera de um filme do gênero. Evolução não significa sempre mudança para melhor; o tempo não é somente algo que nos melhora e melhora o planeta. Ao fazerem isso, tais obras se recusam a vender uma moralidade que desemboque em clichês tais como finais felizes e esperançosos. Justamente aqueles que fazem o espectador sair do cinema ou desligar a TV convencido de que a vida vale a pena. Ou que, pelo menos, no fim vai ficar tudo bem. Não raro, filmes desse tipo não estão interessados em moralidade (no melhor sentido da palavra) nenhuma.

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Essa ousadia se acentua mais ainda quando nos damos conta de que os modelos hegemônicos de ficção bebem na tradição iluminista de pensamento, em que se baseia toda a subjetividade e cognição ocidentais. Esses modelos acabaram se tornando uma espécie de venda narcísica que exagera nossa importância e nos impede de enxergar nosso verdadeiro tamanho, em todos os sentidos e dimensões.

Quando essa realidade nos aparece sem anestesia, ela traz muitos desafios. Aquele que procurar algum consolo nessa verdade demonstrará ser honesto – e por isso livre – o suficiente para enfrentar o paradoxo do seu tempo de existência. E, assim, poderá ampliar essa experiência transformando a vida num fazer estético. É para pessoas assim que a Arte existe.

Para assistir a Aniara, clique aqui.


Ficha Técnica
Aniara (2018) – Suécia, Dinamarca e Estados Unidos
Direção: Pella Kågerman & Hugo Lilja
Roteiro: Pella Kågerman & Hugo Lilja
Edição: Pella Kågerman, Björn Kessler e Michal Leszczylowski
Fotografia: Sophie Winqvist
Design de Produção: Linnéa Pettersson e Maja-Stina Åsberg
Trilha Sonora: Alexander Berg
Elenco: Emelie Jonsson, Bianca Cruzeiro, Arvin Kananian, Anneli Martini, Jennie Silfverhjelm & Emma Broomé

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