Anora
Este texto pode conter spoilers.
A polêmica de Cannes-2024
Quem me conhece sabe que sou muito fã do estadunidense Sean Baker. Considero Projeto Flórida (2018), que resenhei no Longa História em artigo, o grande filme da segunda década deste século. Sua ousadia estética, narrativa e sobretudo civil não encontra par entre muitos filmes também ousados em termos de ruptura das expectativas e bases de conhecimento da audiência. Seu anterior Tangerine (2015), filmado inteiramente com um Iphone 5, é verdadeiro cinema de guerrilha, e já revelava um cineasta que quebra parâmetros não apenas artísticos, mas também sociais. Por isso, celebrei a Palma de Ouro de Anora em 2024, por reconhecer um realizador com os olhos no futuro.
Porém, o prêmio em Cannes para Anora passou longe da unanimidade. A Semente do Figo Sagrado, de Mohammad Rasoulof, era o preferido de muitos críticos, e com razão. Figo Sagrado é o grande filme insurgente do ano, e também perfeitamente classificado como cinema de guerrilha. Focalizando os protestos pela morte da jovem iraniana Mahsa Amini em 2022, Rasoulof filmou na clandestinidade, já que, agora exilado, está na lista de perseguidos do governo teocrata iraniano.
Neste momento, depois de ter assistido a Anora na 48a. Mostra de Cinema de São Paulo, estou bastante inclinada a concordar com esses críticos. Entretanto, penso que vale a pena abstrair um pouco a polêmica de Cannes e reconhecer Anora dentro do universo dos trabalhos de Baker, que realizou pelo menos dois grandes feitos no Cinema. Em minha percepção, podemos dizer que Cannes premiou o diretor dos soberbos Tangerine e Projeto Flórida.
Mas Anora não é um filme sem qualidades
Anora traz muitos dos traços que caracterizam o trabalho cinematográfico de Baker. Mantendo as usuais subversões de modelos sociais típicas do cineasta, o filme aborda o mesmo grupo social que sempre recebeu sua atenção. Trata-se do lumpemproletariado, ou lumpesinato, que podemos definir como a camada social abaixo do proletariado. O lumpemproletariado ainda não conquistou uma percepção coletiva de classe, tampouco uma autoconsciência individual que lhe permita ter uma ideia precisa de sua condição existencial.
No caso de Anora, esse lumpemproletariado está recortado no universo das boates e clubes de striptesase e private dance, o que fica evidente no primeiro minuto do filme. Somam-se, ao universo de Anora/Ani (Mikey Madison), os capangas do pai bilionário do russo Ivan/Vanya Zakharov (Mark Eidelshtein), que também podem ser incluídos no mesmo segmento lúmpem. Esses grupos, no filme, são definidos por gênero, cada qual vendendo sua força de trabalho possível. Às mulheres, resta vender o próprio corpo; aos homens, a força física e a capacidade de violência. Mas ambos igualmente servem aos que têm muito mais posses e poder do que eles.
A sequência central do filme é a longa e fria noite em que Anora e três dos serviçais do pai de seu marido Vanya peregrinam por Nova York em busca do rapaz. Nela, esse lumpesinato se debate, sabendo que não tem outra alternativa a não ser se submeter ao poder do capital. O momento em que o capanga Toros (Karren Karagulian) recusa uma ordem dos guardas de trânsito da cidade e, desesperado, arranca seu carro do guincho em que estava preso, manifesta sua escala de valores. Isso se repete em Las Vegas, e na facilidade com que o casamento dos jovens é anulado por ordem do casal de bilionários. O poder financeiro dos Zakharov é maior do que qualquer lei.
Pessimismo e otimismo numa só personagem
Nesse sentido, Anora repete o pessimismo de Projeto Flórida, que termina com o completo fracasso de sua protagonista em manter a filha junto consigo, porque sua condição miserável impõe à menina uma vida precária. Não há como lutar contra o poder do capital e das instituições que definem o que podem e o que não podem fazer os que não têm dinheiro, ou poder, ou as duas coisas.
Contudo, por outro lado, Anora recupera o que é possível ao ser humano para além das normas morais sociais: ética, dignidade. Essa condição também é construída ao longo de outro filme de Baker – Starlet (2012). Manifesta-se também em Projeto Flórida. Nos três filmes, porém, Sean Baker não negocia a narrativa com o espectador. Por isso, não coloca suas protagonistas em algum tipo de resgate que as situe em alguma moral burguesa. Elas continuam a ser strippers, atrizes pornô e prostitutas, mas pessoas mais apropriadas de si mesmas. Aos homens, porém, Baker não atribui esse destino, como fica evidente em Red Rocket (2021).
Esse percurso narrativo em seus filmes torna Baker um cineasta insurgente, ainda mais se lembrarmos que o soft power estadunidense definiu modelos narrativos que vão na contramão de seus filmes. Nesse sentido, Anora não cria caminhos narrativos novos, mas consolida Sean Baker como uma pessoa que, por meio do cinema, levanta teses pouco usuais para pensar o ser humano e a sociedade que criamos.
Uma protagonista ambígua
Não obstante, Anora traz, como novidade na filmografia de Baker, uma protagonista ambígua, ora proposta como Cinderela pela divulgação do filme, ora com um pragmatismo e um senso de oportunidade para aproveitar o que a sorte lhe ofereceu. De certa forma, Ani acaba sendo as duas coisas. É oportunista o suficiente para aceitar um casamento por impulso com o infantilizado Vanya. Mas é ingênua o suficiente para crer que o marido estará a seu lado no enfrentamento ao casal Zakharov. Leva um tempo para que ela se dê conta de que nenhuma das duas coisas é humanamente possível.
Esse tempo é o cerne da narrativa, e está atravessado pelo processo de autoconsciência de Ani sobre seu lugar na cadeia social estadunidense. Para isso, a protagonista tem o apoio do capanga Igor (Yura Borisov), responsável por desencadear a impactante cena final do filme, que traz algo já presente em Starlet: para além da autoconsciência dos desprivilegiados como seres humanos, a possibilidade de encontros verdadeiros.
As mudanças possíveis
A coerência de Anora com o percurso intelectual de Sean Baker o torna um filme significativo em sua carreira. As qualidades de Baker como pensador estão todas lá. Principalmente, e o que não citei aqui com ênfase, mas considero uma de suas características mais importantes, o fato de que o cineasta recusa toda e qualquer manifestação sentimental que possa dar ao espectador algum conforto ou alguma previsibilidade emocional.
Não, a catarse não virá junto com qualquer drama meloso que faça o espectador sair do cinema acreditando que o mundo não é injusto nem violento. E não, a protagonista não foi capaz de mudar nenhuma mínima estrutura sequer do universo à sua volta. Mas foi, pelo menos, capaz de mudar um pouco a si mesma.
E isso, convenhamos, é mais do que suficiente, num mundo em que o retrocesso civilizatório e o reacionarismo empurram muitas pessoas para uma condição de vulnerabilidade sem retorno. Mudar a si mesmo, enxergar com amplitude sua própria vida, também é resistência. Essa, talvez, a mais concreta de todas.
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker
Edição: Sean Baker
Fotografia: Drew Daniels
Design de Produção: Stephen Phelps
Trilha Sonora: Keith Joseph Anderson
Elenco: Mikey Madison, Mark Eidelshtein, Luna Sofía Miranda, Karren Karagulian, Yura Brisov, Vache Tovmasyan