armadilha mortal dossie sidney lumet

Armadilha Mortal | Dossiê Sidney Lumet

Por Antônio Pedro de Souza
Última atualização: 16/06/2024

Armadilha mortal (Deathtrap, 1982)

Roteiro: Ira Levin, Jay Presson Allen

Elenco: Michael Caine, Christopher Reeve, Dyan Cannon

Às vezes, acontece: o alinhamento perfeito de raros talentos produz obras formidáveis para o cinema ou TV. Foi assim em 1983, com a fluidez cinematográfica de John Carpenter e o texto forte de Stephen King, que deu ao mundo a adaptação de Christine – O Carro Assassino. Foi assim em 1997, com o roteiro e direção de James Cameron, a música de James Horner, na bela voz de Céline Dion, e os talentos de Leonardo DiCaprio e Kate Winslet, que fizeram de Titanic um estrondoso sucesso de público e crítica.

É claro que esses alinhamentos aconteceram antes e voltaram a acontecer depois… Lá nos anos 1960, um romance denso – e tenso – do escritor Ira Levin foi levado às telas sob a regência forte de Roman Polanski e atuações impecáveis de Mia Farrow, John Cassavetes e Ruth Gordon. Era O Bebê de Rosemary, que chegava para assustar as plateias e criar um novo filão no gênero do terror: o dos filmes sobre o anticristo (em especial, das crianças-demônios).

 

Nos anos 80, quando o anticristo havia tirado uma folga das telonas (mas ele ainda apareceria em sequências esporádicas de O Exorcista e A Profecia), o terror voltou seu fôlego para duas novas retas: o slasher e o terrir (comédia de terror), bem como o gênero policial ganhou força, com filmes mais “pé no chão” do que os blockbuster estrelados por monstros como Jason e Freddy.

É neste contexto que Ira Levin vê-se alinhado, novamente, a outros raros talentos: seu texto – ainda forte, ainda denso – é captado pelas lentes de Sidney Lumet, e pelas interpretações de Michael Caine e Chistopher Reeve. O resultado é o maravilhoso Armadilha Mortal: um filme que mescla comédia, romance policial, uma pitadinha de slasher, e é coberto com uma calda de drama para ninguém botar defeito.

O filme gira em torno do escritor Sidney Bruhl, que amarga um retumbante fracasso em sua peça teatral mais recente. Após ser detonado pela crítica especializada e de ser humilhado por seu produtor, ele amarga a derrota ao lado da esposa, uma mulher que sofre do coração. Chega até ele, então, um manuscrito que poderia mudar sua vida para sempre: uma obra-prima genuína escrita pelo novato Clifford Anderson.

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Sentindo que este pode ser o seu novo sucesso, Sidney arquiteta um intrincado plano: convida Clifford para sua casa a fim de orientá-lo a terminar a peça. Mas, no fundo, suas intenções não são nada nobres: o que ele deseja realmente é matar o jovem talento e assumir a autoria de Armadilha Mortal.

Inicialmente relutante, a esposa de Sidney, a bela Myra Elizabeth Maxwell Bruhl, aceita participar do atentado ao rapaz, embora, no momento do embate entre os dois homens, ela tenha um colapso nervoso e quase coloca tudo a perder. Por fim, a moça ajuda a se livrar do corpo.

Sidney (o personagem) mostra, aqui, toda a frieza de um assassino, contando passo a passo seu plano para a vítima, numa intrincada teia que o próprio Clifford ajuda a construir. Aos poucos, ele vai moldando seu plano mortal e percebemos que uma tragédia irá se abater sobre o jovem escritor. 

 

Segue o filme e, durante uma noite chuvosa, a vidente Helga Ten Dorp aparece pressentindo que algo grave irá acontecer aos moradores daquela casa.

Depois que ela vai embora, enquanto discutem sobre o futuro da peça, Sidney e Myra são surpreendidos pela chegada de… Clifford! Oi? Ele não havia morrido? Aparentemente, não. E o espectador está prestes a entrar num turbilhão de reviravoltas.

A cada momento, o filme nos engana, trazendo mais elementos e desfazendo o que achávamos ter sido descoberto quinze minutos antes… O ritmo é frenético, os diálogos são fortes e o tom de comédia se une perfeitamente ao lado policialesco. Claro, como já, dito, com aquela pontinha do slasher…

Armadilha Mortal traz combinações perigosas, mas que, graças à maestria de Lumet, caem muito bem no desenrolar da história.

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Famoso por ter feito mais de 150 filmes, Michael Caine já havia, em 1982, colecionado dezenas de papéis nas telonas. E defende seu personagem dramaturgo com força. Você sente ódio e se apaixona por Sidney a todo instante. Ao mesmo tempo em que deseja que ele seja desmascarado, você torce para que ele leve seu plano adiante, só para saber onde tudo isso vai dar…

E como imaginar Christopher Reeve vivendo um personagem dúbio? Em 1982, o moço alto de olhos azuis penetrantes, já tinha ganhado o mundo com o tímido Clark Kent e seu alter-ego Superman em dois dos longas-metragens mais bem-sucedidos do universo dos super-heróis. Ou seja: Reeve era a definição de “bom moço cinematográfico”, e qualquer papel que ousasse perverter isso poderia causar um apocalipse!

Pois bem, em Armadilha Mortal, o jovem ator consegue ser mais misterioso e instável que o já veterano Caine. Depois de seu retorno na noite chuvosa, descobrimos que há um plano entre ele e o anfitrião para, juntos, escreverem a tal peça Armadilha Mortal, e que seu assassinato, cenas antes, não passava de uma armação. E mais: foram eles que tramaram o ataque cardíaco fatal de Myra porque… Bem, eles são um casal!

Sim! Lumet insere uma trama homossexual num longa de comédia policial de 1982, mas não no sentido caricato, como a maioria dos relacionamentos gays eram (e ainda são) mostrados em produções audiovisuais. Há uma relação honesta (até a página 2, como dizem por aí) entre os homens. Um amor mesmo. Embora, depois, o negócio desande…

Mas, neste momento da revelação, os dois estão juntos e têm um plano – para o trabalho e para a vida. O filme brinda o espectador com um beijo entre o eterno Superman e o futuro mordomo do Batman… Lembre-se: estamos em 1982, anos-luz antes de relacionamentos homoafetivos serem vistos sem assombro por falsos moralistas.

Depois, claro, o filme precisa andar mais uma vez, e aí começa, de fato, o jogo de gato e rato. E bota jogo nisso! Aliás, o próprio título, Death Trap, sugere esse jogo de pega-pega: evoca a ideia de uma ratoeira, mas, em vez de apenas o rato se dar mal no final, o roteiro do longa evoca outros clássicos: os famosos desenhos animados, em especial “Tom e Jerry”. A cada instante, a posição de dominador e dominado muda: ora é Clifford quem dá as cartas, ora é Sidney.

E essa mudança, no ato final do longa, ocorre com diferenças de poucos minutos. Em um momento, você vê um dos personagens algemados e o outro fugindo, para, no instante seguinte, quem estava fugindo ser atingido por uma flecha, e quem estava algemado estar segurando um arco, e, então, quem foi atingido pela flecha aparece segurando uma arma, e o arqueiro já se encontra encurralado numa parede e… enfim! A adrenalina corre solta no terço final da produção. 

Finalmente, o espectador se deixa levar pelos movimentos da louca montanha-russa proposta por Lumet. Não cabe mais a nós torcer por um personagem ou odiar um ou dois deles. Já não importa nossa vontade: a história tem vida própria, e sabemos que tudo pode acontecer antes dos créditos finais. E, acredite, acontece: a vidente volta à cena mais duas vezes para decidir o placar do jogo. 

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Aqui, Lumet brinca com a própria história do teatro. As intervenções da vidente são semelhantes às dos coros nas tragédias gregas que contavam as grandes revelações da história. Mas, mais uma vez, vale lembrar que o filme tem uma incrível vida própria, e a vidente deixa de ser apenas um personagem que revelaria parte do enredo. É dela que surge a cartada final, o xeque-mate do jogo a que estamos assistindo há cerca de 1 hora e 50 minutos. E, então… as cortinas se fecham.

Sidney Lumet encerra com inegável qualidade o filme, mostrando, mais uma vez, porque foi considerado um dos mais prolíficos diretores do século XX. Como já mencionado, ele conseguiu fazer Christopher Reeve deixar de lado as feições de um personagem bonzinho e amado por crianças e adultos, para dar vida a um homem de caráter duvidoso, disposto a tudo para alcançar seu objetivo. Curiosamente, no ano seguinte, Christopher viveria o mesmo drama em sua série de filmes que o consagrou: em Superman III, o homem de aço acaba sofrendo os efeitos nefastos de uma criptonita pirateada e se torna mau! Ainda não assistiu a essa pérola? Corra pra TV e assista, nesta ordem: Superman I, II, Armadilha Mortal, Superman III e Superman IV. Depois volte aqui e me conte o que achou.

Michael Caine também faz um tipo detestável. Até mais que o vivido por Reeve. Mas também é tão vítima quanto o outro quando o jogo realmente começa. 

E, quando eu falei que o amor dos dois acaba no decorrer do filme, mas que era, inicialmente, verdadeiro, vale a pena ressaltar uma cena, bem próxima do final, em que Clifford propõe para Sidney: “Eu vou embora, levo a peça e, daqui a vários anos, quando ela for um sucesso, digo que você me inspirou e orientou muito, mas que eu pedi para sair da sua casa, pois ficava constrangido ao vê-lo cada noite com uma mulher diferente. Você as trazia aqui, pois procurava encontrar, em cada uma, um pouco de sua esposa falecida.”

Ou seja, eles são vigaristas, mas Clifford não estava disposto a expor seu romance com Sidney, pois sabia que ambos seriam prejudicados – principalmente Sidney, mais velho, casado, dono de uma moral ilibada, etc.

Não é um gesto totalmente louvável, mas também não é uma canalhice completa. É apenas uma ação… humana!

Lumet também sabe brincar com as cores, o cenário e a trilha: o filme apresenta tons fortes. Principalmente, vermelho, amarelo e azul. O cenário, ora gigante, ora claustrofóbico, a depender da necessidade narrativa, nos faz ficar mais íntimos dos personagens.

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À exceção do prólogo e do epílogo, bem como de um breve interlúdio no sepultamento de Myra, todo o ato se passa na casa de Sidney, em especial na sala, que serve como escritório onde os dois homens escrevem seus textos. Em contraponto, a parede dos fundos exibe uma grande coleção das mais diversas armas: facas, machados, revólveres, algemas, entre outras. 

O perigo mora ali. Sabemos disso. A parede lateral dá para o pátio de Sidney, mas, sempre que a olhamos, temos a paisagem embaçada pela chuva ou pela neve. O que significa que há uma saída para aquela armadilha em que os personagens se meteram, mas não é uma saída fácil; eles poderão se machucar ao tentar sobreviver. A música ajuda a ditar o ritmo do filme. Por momentos, é alegre ou frenética. Nas horas de tensão, ela fica grave, pesada, assustadora. É importante se deixar levar pela música para entender melhor a história.

Vale nota, ainda, uma cena do começo do filme, em que críticos falam mal da peça de Sidney. Se filmada hoje, teríamos uma edição rápida como nos vídeos feitos para as plataformas digitais. Fosse filmada nos anos 2000, veríamos uma sucessão de mudanças de canais de TV, ativada por controle remoto. Mas estamos em 1982, lembre-se. E essa mudança é frenética, sim. Os canais de TV voam pela tela, sim, com crítico após crítico desancando a peça do escritor. Mas essas mudanças são ativadas manualmente, e podemos ouvir o “clique” dos botõezinhos da TV sendo apertados e girados. É uma sensação nostálgica maravilhosa.

Por fim, Armadilha Mortal não é sobre o mal que Sidney faz a Clifford ou Clifford faz a Sidney, mas sobre o mal que cada um faz a si próprio. Ambos se meteram em armadilhas particulares (alô, Marion Crane!!!) e precisam escapar dela. Marion teve Norman Bates em seu caminho. Sidney tem Clifford, Clifford tem Sidney, e ambos terão Helga.

Encontre os demais textos do Dossiê Sidney Lumet em nosso editorial.

Antônio Pedro de Souza é professor de Língua Portuguesa, jornalista e apaixonado por cinema, literatura e telenovela. É autor dos livros “Pelo Caminho” e “Bodas Obscuras”, além de coordenar o site Projeto Lumi e o canal do YouTube TV Lumi, ambos voltados para o setor cultural.

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