As ondas
Última atualização: 13/12/2020
Faz parte da identidade cinéfila o apreço por diretores específicos. Na última década, novos talentos surgiram na cena mundial e logo reuniram admiradores. O estadunidense Trey Edward Shuts é um deles. Seu mais recente longa, As ondas, foi ansiosamente esperado por quem se entusiasmou com seus dois filmes anteriores, Krisha (2015) e Ao cair da noite (2017).
Sobre Krisha, há um diagnóstico quase unânime de “muita direção para pouco roteiro”. Inspirado em histórias familiares, Shuts realiza uma obra sem grandes originalidades. Contudo, ela é intensificada por meio de um sofisticado artesanato imagético. O que mais se destacou foi a alteração da razão de aspecto da tela à medida que a protagonista perde o centro emocional num evento de família.
Em seu filme seguinte, Ao cair da noite, que considero o melhor de 2017, Shuts experimenta outra roupagem estética. Mas, desta vez, capricha num roteiro que remete à grande doença da atualidade: o avanço da extrema direita pelo mundo e o decorrente esgarçamento do tecido social em diferentes países, baseado na quebra das relações de confiança em esferas cada vez mais estreitas da sociedade. A aterrorizante imagem desse estado de coisas transforma Ao cair da noite num filme absolutamente obrigatório ao debate sobre o fascismo no mundo.
O estado da arte nas Ciências Sociais e na Filosofia
As ondas reúne o conhecimento manifestado por Shuts em trabalhos anteriores e sobrepõe mais uma camada ao diálogo que iniciou em Ao cair da noite. Desta vez, a proposta é pensar como reverter a espiral de ódio provocada pelo machismo e pelo racismo estruturais. Novamente, Shuts mostra-se afinado com o estado da arte dos estudos e debates em Ciências Sociais e Filosofia. De fato, de 2017 para cá, muita coisa ruim aconteceu no mundo. Mas também melhoraram as possibilidades de compreender e solucionar os graves problemas que nós mesmos provocamos com nossa intolerância tribal e ganância desenfreada.
O que aproxima As ondas de Ao cair da noite é a maneira nunca trivial e nunca explícita de Shults apresentar suas teses. Seus filmes sempre abordam o mais básico das relações humanas: sentimentos como amor, confiança, responsabilidade entre pais e filhos. Para entendermos que na verdade o que está na tela é sobre racismo, machismo e injustiça social, é preciso pensarmos mais um pouco.
E o que torna As ondas um passo além do que foi proposto em Ao cair da noite é que, em seu mais recente filme, Shults propõe alternativas de vida no mesmo âmbito micropolítico em que suas tramas se desenvolvem. O objetivo é o de resgatar o que há de melhor em nós: a capacidade de se entregar, perdoar e compreender que a prática do amor nos engrandece, em vez de nos tornar mais fracos.
As ondas e os filhos como empreendimentos
Para essa proposta, Shults adiciona um elemento novo ao leque conceitual já aberto por seus trabalhos anteriores: o feminino. Para isso, o diretor organiza seu filme em duas partes. A primeira é estruturada pelas forças masculinas em sua pior versão. A segunda apresenta o feminino, reforçado na comparação com o cenário trágico e violento em que o masculino vigora de forma absoluta e exclusora.
Afinado com a contemporaneidade, Shults desenvolve sua sofisticada discussão de gênero de maneira interseccional. Por isso, opta por tratar das questões de raça e gênero de maneira articulada. Assim, o racismo também está lá, justificando as ações de Ronald (Sterling K. Brown), um pai de família negro e bem-sucedido que investe no filho mais velho, Tyler (Kelvin Harrison Jr.), como se este fosse um de seus empreendimentos. Pressiona-o aos limites da exaustão, no esforço por ótimos desempenhos escolares e esportivos. Baseia-se na ideia de que pessoas negras precisam ser mais preparadas que as brancas, se quiserem ocupar espaços de destaque na competitiva e segregadora sociedade estadunidense.
Tyler, por sua vez, sente que, para ter o amor de Ronald, precisa pagar o altíssimo, quase desumano preço que lhe é imposto: tornar-se um homem nos moldes do pai. Isso se demonstra em suas atitudes com outros homens (“larga de ser boiola”, ele diz a outro personagem que será importante posteriormente) e com as mulheres. Na primeira parte do filme, o feminino está ausente. Por isso, não há uma força de contraponto que possa guiar Tyler na direção da saída de seu restrito mundo, que progressivamente se desfaz diante de seus olhos.
A entrada de forças agregadoras
A segunda parte do filme se organiza em torno das diferentes maneiras de os personagens lidarem com os efeitos dolorosos da masculinidade tóxica e violenta sobre suas vidas. Os que permanecem encalacrados nas certezas masculinas se mantêm cegos a qualquer possibilidade de solução ou saída que lhes permita minimamente respirar. Mas os que conseguem se abrir para novos sentimentos – de humildade e de perdão, coisas ausentes no universo machista e misógino – aumentam suas chances de reverem suas vidas.
Desviando-se de Tyler, Shults focaliza o luto (lembro que nem sempre o luto tem a ver com morte) de sua irmã mais nova Emily (Taylor Russell). Mesmo ferida, a jovem busca e encontra em Luke (Lucas Hedges) o amparo e a escuta impossíveis em sua família. Aliás, o casal se ampara mutuamente. Mas é importante salientar que, neste segmento do filme, Emily é quem assume o protagonismo nas transformações íntimas dos personagens. Não acho descabido reconhecer que a primeira parte do filme não tem um protagonista de fato. Nem é sem propósito articular esse dado à destruição física e emocional que testemunhamos na tela.
As forças do feminino dominam a segunda parte de As ondas não apenas na identificação das raízes profundas da dor produzida entre os membros daquela família. Vem delas também a definição de caminhos de retorno a uma vida em que o amor e a confiança, e não a competição e o medo, definem as ações das pessoas e seu relacionamento com os semelhantes.
A câmera como a grande narradora de As ondas
Articulado em duas partes, As ondas está lindamente disposto sobre um conjunto de recursos técnicos e estéticos. Shults já ofereceu alguns em suas obras anteriores, e agora soma novos recursos visuais a seu repertório. Novamente, explora a mudança da razão de aspecto para comunicar ao espectador a opressão que os personagens sofrem. Junto a isso, somam-se luzes que nos confundem. Tudo isso constrói uma onipresente associação entre opressão e sufocamento (“Não posso respirar” foram as últimas palavras de Eric Garner, George Floyd e Beto Freitas) que acompanha os piores momentos do filme. Em momentos de encontro, porém, ouvimos o ar que flui entre os pulmões e narinas de Emily.
A câmera é a escolhida para narrar a história. Seu movimento giratório é recorrente, mas polissêmico. De início, manifesta a ausência de limites espaciais em torno dos personagens. Parece sinalizar que, jovens, eles podem fazer o que querem e ir para onde desejam. À medida que a narrativa se desenvolve, a câmera se volta para os espaços ocupados – e os não ocupados, é preciso notar. Com isso, define limites de posicionamento, e também de ação, para os personagens. Este recurso visual é conhecido no Cinema como motif.
E, como a trajetória da narrativa se completa em seu ponto de partida, essa mesma câmera, ao fim, se volta novamente para os personagens. Com isso, revela os novos e amplos horizontes que eles passam a enxergar após o seu amadurecimento e a libertação do rancor que os oprime. Shults narra uma história subliminar com sua câmera e as alterações na razão de aspecto. Com isso, se revela como o grande artífice daquelas vidas – um professor generoso, ele mesmo orientado pelas forças do feminino.
O que há de novo em As ondas
Mas, sobretudo, o que há de novo em As ondas é uma ideia poderosa de cura e transformação. Isso é essencial tanto para a superação do racismo e da intolerância quanto do machismo e da misoginia. Sabemos que o patriarcado é que inventou o racismo. Assim, a cura para essa doença da humanidade está no feminino como força propulsora do amor, do perdão e do fortalecimento das mentes e corações para enfrentar as vicissitudes da vida.
Existe um certo pessimismo, porém, na proposta de Shults. Ele não parece enxergar em pessoas mais velhas, já endurecidas pelo preconceito e pela infelicidade que a vida lhes impôs, a capacidade de se incorporar ao fluxo do feminino. Cabe aos mais jovens o poder de compreender, praticar e transmitir essa mensagem.
Shults, ele também um jovem cineasta, consolida sua importância intelectual com a robustez temática, conceitual e técnica de seus filmes. Pelas razões dispostas neste texto, As ondas, repetindo o feito de Ao cair da noite, se coloca entre os grandes filmes do ano. Junto a isso, mostra-se um elemento importante na busca de caminhos para um mundo menos injusto e menos desigual. Que, por sua vez, precisa ser imprescindivelmente um mundo menos racista, menos homofóbico, e, sobretudo, menos machista.
Direção: Trey Edward Shults
Roteiro: Trey Edward Shults
Edição: Isaac Hagy & Trey Edward Shults
Fotografia: Drew Daniels
Design de Produção: Elliott Hostetter
Trilha Sonora: Trent Reznor & Atticus Ross
Elenco: Kelvin Harrison, Lucas Hedges, Taylor Russell, Alexa Demie, Renée Elise Goldsberry & Sterling K. Brown
2 comentários em “As ondas”