Breve história de uma família
Muitas pessoas se queixam de que o Cinema não mais oferece histórias originais, haja vista a quantidade de franquias, remakes e continuações por aí. Mas talvez histórias originais nunca tenham existido mesmo. De todo modo, não trazer um enredo original não é razão suficiente para fazer alguém condenar um filme. Breve História de uma família, primeiro longa do diretor chinês Lin Jan-Jie, é um belo exemplo de que se pode contar mais uma vez uma história já muito contada, e mesmo assim manter o interesse do expectador até o último minuto. Porque o filme mostra que há muito mais a dizer do que apenas contar uma história.
Muitos teóricos da cognição e da narrativa asseveram que os seres humanos, ao longo dos milênios, inventaram um número bem limitado de histórias fixas. Tais histórias vão sendo recontadas de diferentes maneiras, mas, no fim das contas, tudo acaba remontando à Bíblia, a Homero, a Sherazade, a Camelot, a Shakespeare e a Jane Austen, entre mais uns poucos.
Senão, qual seria o motivo de tantas versões no cinema, no teatro e na TV para Abel e Caim, A megera Domada, Os Cavaleiros da Távola Redonda, Orgulho e Preconceito e mais algumas outras histórias que amamos ver contadas e recontadas mil vezes? O que torna isso possível, e ser transformado em arte, é que, não sendo a trama original, então que seja original a forma de contar.
Breve História de uma Família convida o espectador a ser co-construtor da obra
Essa introdução é importante para eu exaltar as qualidades de Breve História de uma Família, a que assisti no Festival de Cinema de Berlim de 2024 com a presença de elenco, diretor e produção, e agora está entre os filmes exibidos na 84a. Mostra São Paulo. Saliento esse detalhe porque ter ouvido o diretor dizer algumas palavras sobre sua obra me ajudou a compreender um pouco mais o processo de criação estética como um diálogo com o espectador, o qual, nesse sentido, se torna um interlocutor.
Lin Jan-Jie afirma ter operado em seu filme algo que eu também busco ao apreciar uma obra cinematográfica. Sua matéria prima não é apenas os recursos visuais e sonoros do cinema, mas também as expectativas de desenvolvimento da trama na mente de seus espectadores, expectativas essas que o diretor traz ao nosso pensamento e explora para tocar o enredo.
Isso torna o espectador mais do que um interlocutor: ele se torna um co-construtor da obra. Para essa co-construção, Lin Jan-Jie o convida a ser uma espécie de Big Brother, mas com o olho em um microscópio em vez da tela, para constatar materialmente a condição de micróbios a que o diretor deseja redimensionar seus personagens. Mas micróbios tão sofisticados, que nem o especialista em microbiologia do filme (Zu Feng) consegue compreender.
Breve História de uma Família nos ensina como é o Cinema
Preciso dizer ao leitor como aprecio trabalhos que partem dessa perspectiva de um Cinema como Arte em co-construção. Assistindo a filmes assim, sinto que seu diretor me considera uma pessoa inteligente o suficiente pra recuperar em meus arquivos de memória de vida quais conhecimentos posso usar como espectadora de um filme em específico. Em Breve História de uma Família, Lin Jan-Jie conta com eles e precisa deles para fazer com que seu trabalho realmente dê certo.
Por outro lado, do meu ponto de vista, saio de filmes assim com a sensação de que aprendi mais sobre Cinema. Também me congratulo comigo mesma por me sentir inteligente e me reconhecer como parte integrante da realização de uma Arte rica e sofisticada em recursos, mas ao mesmo tempo tão popular.
Para quem em alguns momentos assume um papel praticamente didático, como é o caso de Lin Jan-Jie na feitura de seu filme, fazer seu expectador se sentir inteligente é um fator fundamental. Afinal, não é possível a gente aprender com um professor que nos trata como se fôssemos burros.
Uso a palavra “didático” meio com o pé atrás, porque, como professora, fora de sala de aula administro meu pensamento todo o tempo para não cair no vício e acabar dando aula de português ou ciência cognitiva para pessoas que não pediram para aprender nada comigo. Semelhantemente, ninguém entrou no cinema junto comigo para assistir aula de alguma coisa. Mas isso não significa que de alguma maneira as pessoas não se sentiram desafiadas.
Como é bom assistir a filmes que correm riscos
Bons professores correm riscos, e Lin Jan-Jie também correu os seus, ao propor jogar uma espécie de mind game com o espectador. Ao longo do filme, ele lança truques visuais para a plateia adivinhar o que acontecerá em seguida. Seu risco nesse jogo foi o de parecer repetitivo, ao usar mais de uma vez recursos como a exploração do extracampo e do espaço vazio em tela, às vezes as duas coisas ao mesmo tempo.
Em alguns momentos da projeção, a tela do cinema se assemelha ao que Diego Velázquez realizou em sua obra monumental Las Meninas: nela, a Infanta Marguerita não olha para nós, embora nos pareça assim a um primeiro olhar. Ela está olhando é para seus pais, os Reis de Espanha, refletidos num espelho ao fundo do ambiente. Nós, ou seja, a pessoa que está vendo o quadro de Velázquez, ocupamos uma terceira camada da obra, ou seja, uma segunda camada extra-tela, já que a primeira camada já está sendo ocupada pelos pais da Infanta.
Nesse sentido, e em resumo, o que temos em Las Meninas é praticamente uma construção imagética em 360 graus, estruturada em três camadas, que permite, a partir do que é projetado na tela plana, a visão de um cenário completo e fechado, incluindo dois personagens que ocupam um lugar posicionado junto a uma espécie de quarta parede, e incluindo também o espectador capaz de enxergar o cenário completo: as quatro paredes ao mesmo tempo.
O Cinema é muito sobre como contar uma história
E, assim como na obra-prima de Velázquez, descobrirmos que, na construção de Breve História de uma Família, ocupamos, em alguns momentos, a terceira camada a partir do que está na tela. Esta é uma plataforma de lançamento para outras camadas da cena. Sabemos que, ali, há mais algum truque do diretor. É como se ele dissesse: “veja, estou fazendo de novo, mas tente adivinhar agora o que estou fazendo”. Por isso, em milésimos de segundo, tentamos nos antecipar a ele para não sermos pegos de calça curta de novo.
Entretanto, a resolução da cena nos gera, mais uma vez, grande surpresa, por mais uma pequena reviravolta na trama do filme. Contudo, nos sentimos felizes por testemunharmos mais um truque inventivo de Lin Jan-Jie. Felizes, mesmo tendo sido enganados mais uma vez por ele, porque todas as vezes ele consegue nos vencer no jogo didático que nos propõe, e com alegria aceitamos, e com mais alegria ainda perdemos, todas as vezes.
Mas retornemos ao enredo, que não é nada de mais. Trata-se da já bastante conhecida trama da pessoa que entra num círculo já constituído e implode as coisas por dentro. Assim são Eve Blackwell em A Malvada (1950), Maria de Fátima em Vale Tudo (1988), Tom Ripley em O Talentoso Ripley (1955). Sem contar o mais recente Oliver Quick (Barry Keoghan) em Saltburn (2023), esta obra por sua vez não tão bem-sucedida quanto as anteriores.
Essa ideia de implosão é explorada pelo diretor de diferentes formas, metafóricas e metonímicas, para deixar claro que é disso mesmo que ele está falando. A singularidade inventiva do filme está na forma de ele contar essa história já tão nossa conhecida.
Explorando até o fim o Cinema como gramática
Assim, interagimos com recursos narrativos e visuais, como mudanças no uso de cores e dimensões e trocas de figurino, e também mudanças de posicionamentos e ausências. Por exemplo, a mesa da família, elemento central em muitos lares, é ocupada com diferentes posicionamentos ao longo da projeção. Isso evidencia as mudanças de importância de determinados personagens, bem como o aumento e a diminuição da proximidade afetiva entre eles.
Essas alterações no plano da tela, junto com rimas visuais e de movimento, nos entregam, muito mais do que com palavras, a visão da lenta penetração de um parasita naquele pequeno grupo de pessoas que, aparentemente uma família, em verdade são estranhas entre si, e meio sem vontade de estarem juntas, porque ou são investimentos fracassados, ou são elementos incomodativos e sufocantes.
Toda essa belíssima construção da trama por meio desses e de outros recursos, nós já os conhecemos de outros filmes. Mas o emprego deles pelo diretor, embora nos convide à interlocução, não torna o trabalho dos atores mais fácil. Ainda cabe a eles dizer sobre o estado emocional de cada personagem relativamente às mudanças provocadas pelo avanço da história. Alguns desses avanços dependem exclusivamente dos atores, uma delas em particular a do adolescente abonado Tu Wei (Lin Muran), e são capazes de provocar reações fortes numa plateia já inteiramente cativada e engajada na história e nos personagens.
Parasitas sob o microscópio
Os elementos de contato do filme extrapolam as estruturas narrativas que guardamos na memória. A metáfora do elemento implosivo como um vírus, um parasita, serve para situarmos o filme na contemporaneidade recente, e no pavor mundial produzido por um vírus que fez o que quis com nossos corpos, nossa mente e a ordem mundial. Assim, o chefe da família ser um especialista em microbiologia não tem nada de aleatório.
Também não é aleatório o uso da palavra “parasita” por Sun Xilun, ator que faz o próprio parasita do filme ao descrever seu personagem em Berlim. O menino pobre Shuo precisava de seus hospedeiros como um peixe precisa da água para viver. Aliás, outra rima que atravessa o filme é a da respiração, que inclusive o abre e o fecha. Com isso, Lin Jan-Jie provoca em nós também, até fisicamente, as sensações sufocantes que os personagens passam em alguns momentos. Sufocamos junto com eles.
Isso tudo para dizer como, mesmo reproduzindo uma trama que atende ao que conhecemos sobre as narrativas ficcionais da experiência humana, em momento algum perdemos o interesse pelo filme, e o acompanhamos com grande envolvimento e curiosidade até o fim. Penso que parte desse envolvimento deriva de termos sido convidados a trabalhar com o diretor na construção de sua (breve, como ele a apresenta) história.
Para não dizer que não falei da China
Breve História de uma Família, bem como muitos outros filmes chineses igualmente interessantes, caminha abordando temas existenciais universais.
Por outro lado, o tema China não está apartado completamente de Breve História de uma Família. Não há como discutir família no contexto chinês sem tratar em algum momento da política de apenas um filho, e como isso pode afetar emocionalmente os núcleos familiares. A questão do filme gira em torno dos filhos como investimento pessoal dos pais no sucesso de alguém que herdou seu DNA. Lembro que esse tema foi explorado lindamente por Hirokazu Kore-Eda em Pais e Filhos (2013). Com um só filho, as fichas estão todas depositadas nele, mas o que acontece se ele não desejar a mesma coisa que seus pais?
Mas essa questão, embora citada, apenas atravessa sem estruturar o filme, porque não é um fato apenas da China. No Brasil, ouço muito mães e pais falando dos filhos não como pessoas independentes, com direito a seguirem seus sonhos e buscar felicidade. Para eles, filhos são investimentos que em algum momento precisam dar seu retorno, servindo e cuidando de seus pais na doença e na velhice. Ou seja: pais que geram, parem e criam filhos não para o mundo, mas para satisfazerem a si mesmos. Isso torna Breve História de uma Família, ao mesmo tempo, um filme chinês e um filme universal.
Direção: Lin Jan-Jie
Roteiro: Lin Jan-Jie
Edição: Per K. Kirkegaard
Fotografia: Zhang Jia-Hao
Trilha Sonora: Toke Brorson Odin
Elenco: Guo Ke-Yu, Zu Feng, Lin Muran, Sun Xilun