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Carcaça

Última atualização: 06/03/2025

Após mais de dois anos do fim da pandemia de COVID-19, provavelmente teremos contato com obras cinematográficas que abordam, cada qual por sua vez, a miríade de problemas derivados do isolamento social e do impedimento de vivermos o luto por nossos mortos, junto com as sequelas da doença que afligem muitas pessoas até hoje. Assim, “Carcaça” (2025), de André Borelli, aborda um desses problemas, e, com sabedoria, não propõe causas nem soluções. Pelo contrário: o fim do filme nos deixa numa confusão que retrata com fidelidade nosso espírito durante a maioria dos meses em que o estado de pandemia vigorou no mundo.

Para tanto, Borelli opta por uma narrativa seca, contextualizada minimamente apenas para que saibamos que o filme trata de um casal em isolamento social em virtude da pandemia. As poucas ações nesse sentido são suficientes para que possamos interagir com elas compondo o mosaico pandêmico que marcou nossa vida. O álcool para desinfetar nossas compras. A necessidade de fazer exercícios em casa. O trabalho remoto. O distanciamento de nossos entes queridos. Enfim: dias inteiros, sem interrupção, passados na companhia de outras pessoas.

carcaça na piscina

Este último tema é o enquadre proposto por Borelli em “Carcaça”. A diferença de idade e de poder na relação entre o casal composto por Davi (Paulo Miklos) e Lívia (Carol Bresolin), filmada em preto e branco, o que sugere um mundo à parte, já compõe suficientemente uma trama. Essa diferença, apresentada dentro do contexto da pandemia, pode atingir intensidades e tensões inusitadas numa situação de isolamento social imposto por medidas sanitárias.

“Carcaça” mostra que a loucura estava em todo lugar

A título de informação, acho importante apresentar alguns números relacionados à violência doméstica durante os meses de pandemia. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o DataFolha, entre maio de 2020 e maio de 2021, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos sofreu algum tipo de agressão. Além disso, cinco em cada dez brasileiros presenciaram alguma mulher sofrendo algum tipo de agressão. Por sua vez, 47,6 mulheres que sofreram violência doméstica perderam o emprego. Números bastante ruins, portanto.

Nesse sentido, abordar a tensão emocional numa casa ocupada full time por um casal confinado se torna relevante para nos levar a reflexões não apenas sociais, mas pessoais. De imediato, salta aos olhos o equilíbrio frágil que o casal vai tentando manter em prol da boa convivência. Gentilezas mútuas, convites para fazerem coisas juntos, refeições partilhadas permeiam o filme, e algumas dessas ações continuam mesmo quando as coisas começam a degringolar.

carcaça sacada

Esse degringolamento se faz com a acentuação das diferenças entre o casal, elevadas à condição de ódio e loucura, enquadrada em planos fechadíssimos. André Borelli não nos dá respostas para que possamos, ao fim de “Carcaça”, saber o que de fato aconteceu para que o caos se instalasse naquela casa. Mas, convenhamos, isso não é necessário. O mundo pandêmico já era louco o suficiente para nos enlouquecer. Por exemplo: na TV, imagens, de corpos de pessoas sendo transportados por ruas vazias em todo o mundo. No Brasil, o binômio pandemia + Bolsonaro é auto-explicativo. Melhor nos perguntarmos onde haveria alguma sanidade.

O mundo nunca mais será o mesmo

Entretanto, Borelli nos oferece uma hipótese. Ao que parece, o necessário isolamento nos primeiros meses de pandemia fez as diferenças entre as pessoas se acentuarem. Além de mais velho, Davi era o provedor da casa. A juventude e beleza de Lívia (e aqui faço a crítica de mais uma vez o corpo feminino sendo explorado em planos fechados de nádegas, algo absolutamente desnecessário e apelativo) é exposta de forma crescentemente ostensiva. Mais velho, Davi poderia inclusive contrair a doença e passar maus bocados, senão morrer.

Por sua vez, Davi explicita quando pode seu lugar de provedor: “você só serve pra foder e pra me fazer companhia”, ele diz a Lívia, em algum momento. Primeiramente tomada pelo medo, Lívia progressivamente assume o lugar de predadora e destila um ódio intensificado por acontecimentos que não sabemos se são reais ou apenas alucinações de sua mente.

jantar

Entretanto, o caso é que pequenos detalhes acabam se juntando para compor um quadro de insanidade que atinge aos dois, cada qual com suas razões e gatilhos para agirem como agem. Aos poucos, eles vão perdendo a capacidade de argumentar e se transformando em puro instinto, como se um vírus tivesse assumido o poder sobre seus corpos.

Em resumo, esta poderosa ideia é o que fica ao fim de Carcaça: com a pandemia, todos acabamos doentes, senão pela COVID, adoecemos no mundo que começou a emergir enquanto a doença nos dominava. Um mundo que mudou para sempre e que exige mais sanidade e serenidade ainda para que possamos enfrentá-lo. Se teremos ou não essa sanidade, o futuro dirá.


Ficha Técnica
Carcaça (2025) – Brasil
Direção: André Borelli
Roteiro: André Borelli
Edição: André Borelli
Fotografia: Evandro Albuquerque
Design de Produção: Juliana Palladino
Trilha Sonora: Clelson Lopes
Elenco: Paulo Miklos, Carol Bresolin

 

 

 

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