Collective

Última atualização: 31/03/2021

Em 2020, a premiação do Oscar incluiu uma mesma obra não só como finalista entre os documentários, mas também entre os filmes estrangeiros. O lindíssimo Honeyland, de Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov (2019), conquistou público e crítica inclusive por sua carismática protagonista, Hatidze Muratovna. Mencionar um documentário e incluir nisso o termo “protagonista” diz muito sobre a forma contemporânea de contar histórias supostamente “reais”, e também sobre como a percepção de realidade está permeada pelo conceito de narrativa. Como veremos, essas afirmações se aplicam a Collective (2019), de Alexander Nanau.

Collective tem a ver não apenas com o conceito de narrativa como também com as atuais possibilidades de criação da obra documental no Cinema. Atualmente, muitos documentários bebem da fonte oferecida pelos reality shows, e estes também existem em várias modalidades. Honeyland apresenta influências de programas do canal Discovery, em especial os que registram um determinado período da vida de alguém, como Quilos Mortais. Por sua vez, Collective explora e se organiza em torno de uma estrutura narrativa poderosa o suficiente para dialogar com as vivências do espectador. Existe o convite para que construamos hipóteses sobre os próximos movimentos da história, como nos melhores filmes de ficção.

Collective

De certa forma, estar afinado com padrões cinematográficos atuais é uma maneira de compensar a história que está sendo contada. Porque, no caso de Collective, é uma história já vista tantas vezes, que é preciso arejar o cansaço do espectador, que, vendo o filme, também se enxerga como cidadão. Essa ação é importante porque Collective trata de algo que já vimos tantas vezes: corrupção, descaso com a coisa pública, assassinato, impunidade.

Revigorando uma palavra desgastada

Os arautos da extrema direita já desgastaram muitas palavras, e uma delas é narrativa. Isso é um problema, porque esse desgaste vem junto com a descoberta, por um número cada vez maior de pessoas, de que só o que há é o que pode ser narrado. Não existe essa coisa que alguns chamam de realidade cabal, de um real que seria mais preciso, mais verídico que qualquer outro. A narrativas são a sustentação de nosso discurso e nossa cognição. Por isso, se impõem sobre os fatos e adquirem estatuto de verdade.

Assim, se a pessoa acredita que a Terra é plana, que vacinas causam autismo e que os comunistas querem dominar o mundo, isso é o mundo dela, o real dela. Para ela, todo o resto é mentira, ou sequer existe como conceito ou como objeto.

Grandes teóricos da estrutura da narrativa dizem que construímos e contamos histórias para, analogamente, compreendermos a vida. Um deles, Tzévan Todorov, afirma que contamos histórias para defender teses e argumentos. E é na afirmação de Todorov que me apoio para identificar a estrutura fílmica de Collective. No filme, a narração de uma história é, ao mesmo tempo, a defesa de uma tese. E, como se trata de uma obra da Romênia, essa tese se repete em vários e excelentes filmes do país, consagrados por crítica e público.

collective

Então é esse o diferencial de Collective: o filme conta uma história recorrente, que é o presente da sociedade romena, com um passado doloroso que insiste em se materializar no agora. Mas é um trabalho que se singulariza ao assumir a forma contemporânea dos documentários: ser um híbrido de descrição e narrativa. Esses aspectos justificam sua presença em duas categorias de finalistas ao Oscar.

O brasileiro se identifica facilmente com o cinema romeno

Quem gosta de filmes romenos já sabe duas coisas: a primeira é que eles, cada um do seu jeito, estão mostrando ao mundo como é seu país. Corrupção, burocracia, descaso das autoridades com a coisa pública, com o povo. Obras robustas como Sieranevada, de Cristi Puiu (2016), 4 meses, três semanas e dois dias (2007) e Baccalauréat (2016), esses dois últimos de Cristian Mungiu, nos apresentam uma Romênia que luta para se livrar dos vícios de uma longa ditadura.

Esses vícios são o eixo central de Collective, e a forma como o filme os apresenta nos faz lembrar do Brasil. A partir de um fato trágico, que foi um incêndio numa casa de shows, um fio vai sendo puxado, e com isso aparecem crimes inomináveis cometidos por autoridades de saúde do país. Qualquer semelhança com os escândalos de corrupção no Brasil, seguidos dos outros escândalos no julgamento desses crimes, não é mera coincidência.

Collective

De todo modo, como documentário ou como obra de ficção, uma mesma ideia se reitera no cinema romeno, e está presente em Collective. É uma mensagem de desesperança: é impossível mudar, por meio das forças que existem neste momento, a estrutura social que é a causa última dos fatos que as obras apresentam, descrevem e narram. Aqui também a semelhança com o Cinema brasileiro, e com o Brasil, se mantém: muitas coisas mudam para continuarem as mesmas.

Collective segue uma tendência contemporânea: mostrar a “realidade” como narrativa de ficção 

Alexander Nanau construiu seu filme obedecendo à sequência como as coisas foram acontecendo. Por isso, o aumento da octanagem é espontâneo, porque os fatos valem por si, cada um mais gravíssimo que o outro. Na primeira parte, o protagonismo é do jornalista Catalin Tolontan, que descobre um esquema de adulteração de produtos médicos que matou por infecção hospitalar muitas vítimas do incêndio na Collective. A essa descoberta, seguem-se denúncias que escancaram a extensão gigantesca da corrupção no sistema hospitalar romeno.

Com a queda do ministro da saúde, um novo ministro assume, e sua posse inaugura a segunda parte do filme. Vlad Voiculescu, o novo ministro, assume o protagonismo e a tarefa de tentar mudar o sistema deteriorado que Tolontam, sua equipe e profissionais de saúde revelaram. Essa mudança de protagonismo é essencial para o desenlace da história que Nanau está contando, que termina com as eleições romenas. É absolutamente coerente que o final do filme seja esse. As eleições são o grande termômetro da mudança – ou da falta dela – da sociedade romena que as denúncias de Tolontan e os esforços de Voiculescu poderiam provocar.

Collectiv

Deixo para o espectador descobrir e refletir acerca do que aconteceu nas eleições, mas o essencial é notar que Collective se acomoda numa estrutura de obra de ficção. Assim, há personagens protagonistas e coadjuvantes, um enredo de intensidade crescente, um clímax conscientemente pensado e um desfecho fortemente marcado. Como narrativa, isso pode comunicar um sentido e uma tese precisa, assim como propôs Todorov: Collective mostra que, na Romênia (assim como no Brasil, como temos visto), a realidade tem superado a ficção naquilo que as pessoas são capazes de perpetrar por ganância e psicopatia, assim como os mais malévolos vilões do cinema. Mas com a diferença de que, na narrativa da “realidade”, não há final feliz à vista.


Ficha Técnica
Colectiv (2019) – Romênia
Direção: Alexander Nanau
Roteiro: Alexander Nanau, Antoaneta Opris
Edição: Dana Bunescu, George Cragg, Alexander Nanau
Fotografia: Alexander Nanau
Design de Produção: Karoline Maes
Trilha Sonora: Kyan Baiani
Elenco: Catalin Tolontan, Vlad Voiculescu, Razvan Lutac, Mirela Neag, Camelia Roiu, Tedy Ursuleanu

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