
Conclave
Já fazia algum tempo que eu queria resenhar “Conclave”, de Edward Berger, indicado em oito categorias ao Oscar 2025, mas eu andava meio sem inspiração. Mesmo assim, elogiei o filme para muita gente e salientei suas imensas qualidades, mesmo se o compararmos ao gigantesco “Nada de Novo no Front” (2022), obra anterior de Berger ambientada na Primeira Guerra Mundial (Netflix). “Nada de Novo…” recebeu com absoluta justiça quatro Oscars em 2023, inclusive o de filme em língua não-inglesa.
Um ano após o formalmente caprichado “1917”, de Sam Mendes (2019), em “Nada de Novo…” Berger, em contrapartida, mostra que apuro técnico é uma coisa muito boa de se ver no Cinema. Entretanto, isso não é suficiente para retratar o horror de um conflito tão assassino quanto a Primeira Guerra Mundial, a guerra das trincheiras e das baionetas. Dessa maneira, com emoção e fidedignidade, Berger focaliza a vivência de um personagem central junto aos demais que transitam a seu redor. Nesse sentido, o diretor revela o horror absoluto de uma guerra caracterizada pelo massacre de uma geração inteira no corpo-a-corpo mortal, olho no olho do inimigo, as lâminas penetrando as carnes em apertadas trincheiras.
Assisti a “Nada de Novo…” buscando elos que caracterizassem o trabalho de Berger, para além do fato de que ele é um dos diretores mais inventivos e refinados de sua geração. Pensando no filme que lhe deu prêmios e justa fama, ratifico minha impressão de que Berger tem um especial talento para transformar em arte espetacular os enredos que escolhe filmar. Mas, evidentemente, sempre há mais a dizer.
A guerra do corpo-a-corpo
Em “Nada de Novo…”, um dado importante sobre a Primeira Guerra é alçado à condição de elemento central da narrativa. Como já salientei acima, trata-se dos jovens corpos dos soldados alemães, e franceses também, imolados para atender à ganância dos senhores do mundo. Em sequências memoráveis, Berger salienta a absoluta falta de sentido de tantas perdas. Elas levam a nós, e aos personagens também, a buscar compreender os mecanismos que provocam tanta carnificina.
Como afirmei, a Primeira Guerra Mundial se caracterizou pela ação bélica situada em trincheiras onde os soldados viviam e interagiam. Semelhantemente, ali também eles digladiavam numa proximidade física desumana, ocasionadora de traumas inimagináveis aos sobreviventes. Berger reforça esse gigantesco custo emocional e existencial na inesquecível sequência em que seu protagonista alemão fere mortalmente um inimigo francês, para logo depois constatar o tamanho do absurdo em matar um completo desconhecido que nunca em nada lhe prejudicou.
Não obstante o foco nas pessoas, grandes máquinas surgem de vez em quando. Sua aparição é sempre espetacular mesmo na pequena dimensão da smart TV. Mas a atenção de Berger é realmente nos corpos humanos em conflitos físicos no que estes têm de mais sangrento e selvagem.
A importância central dos figurinos em “Conclave” e “Nada de Novo no Front”
“Conclave” também gira em torno da ideia de corpo. Porém, desta vez o corpo que interessa a Berger não é o de um sujeito bélico, fisicamente mortal, nos dois sentidos mais conhecidos da palavra. Os corpos que circulam em “Conclave” são os organizados em categorias sociais: gênero, classe. No geral, Berger preocupa-se em como vestir seus personagens. Para compô-los em “Nada de novo…”, o figurino é um elemento que singulariza os personagens, destacando-os em meio a uma massa indistinta. Em “Conclave”, por sua vez, o figurino se presta a hierarquizar os grupos que interagem em cena.
Em “Nada de Novo no Front”, os figurinos traziam a mensagem de que quem os vestia eram seres humanos como nós. Já em “Conclave”, a ideia a ser transmitida é a de que quem os veste não são pessoas físicas, mas cargos, posições na cadeia de comando. As roupas podem comunicar privilégios, mas, na maioria das vezes, comunicam a falta deles.
Em “Conclave”, figura e fundo se marcam nas cores
Essa hierarquia é explorada cromaticamente com o apoio luxuoso da direção de arte a cargo de Carlo Aloisio e Roberta Federico, articulados à fotografia perfeita de Stéphane Fontaine. Os cinquenta tons de cinza dos cenários de circulação interna do Vaticano contrastam polarizadamente com o vermelho vibrante das batinas dos cardeais, chamadas “roquetes”, junto com o ouro que orna suas longas capas, chamadas “mozzettas”.
Os cardeais são os membros mais exuberantes da cadeia de comando da Igreja católica, e a fotografia de contrastes ressalta mais ainda sua proeminência. Por exemplo, é belíssima e inesquecível a câmera alta em plano aberto que, emulando (não coincidentemente) a série “The Handmaid’s tale”, destaca os cardeais todos em vermelho e branco caminhando na chuva.
Os membros de outras hierarquias não se destacam cromaticamente. Esse detalhe propõe a ideia de que, no que diz respeito a quem serve quem, todos são iguais perante os cardeais. Essa proposta é importante porque a assimetria de papéis sociais na ordem católica das coisas gira também em torno de quem serve e quem é servido.
Um mesmo espaço, mas diferentes poderes
Nas cenas que acontecem em ambientes comuns a todos, a hierarquia é posta em figura por Berger. Em especial, o diretor dedica tempo às preparações das refeições, ocasiões em que aparecem as mulheres. Fica muito evidente o tempo todo que o fato de aqueles corpos ocuparem o mesmo espaço não significa que ali valem a mesma coisa. As mulheres estão sempre em posição de servir: arrumar a mesa, distribuir louça e talheres etc.
Essa desigualdade não incomoda os homens em momento algum. Mesmo aqueles partidários de uma Igreja menos engessada e mais alinhada ao tempo contemporâneo não parecem se dar conta da servidão e absolta falta de poder decisório das mulheres naquela Instituição. Essa servidão é tão estrutural que alguns deles nem se incomodam que algumas mulheres dali os sirvam em outros ambientes.
Essas e outras situações do cotidiano revelam o estado de fossilização histórica da Igreja Católica, uma imutabilidade que não se transformou em beleza, como a secular Capela Sistina onde os cardeais elegem seus Papas. Nesse sentido, Edward Berger não deseja propor metáforas ou representações sobre as imagens e ações que apresenta. Deseja, ao contrário, propor mundos, leituras e interpretações estruturais subjacentes ao enredo. E esses mundos propostos são tão ou mais importantes para o filme do que a história que está sendo contada.
O que nos leva a Ralph Fiennes
Os corpos retratados em “Conclave” são idosos, cansados. No caso do protagonista, o Cardeal Thomas Lawrence (Ralph Fiennes simplesmente espetacular), idade e cansaço ganham uma dimensão colossal. Fiennes aparece envelhecido, a barriga saliente. Berger o enquadra frequentemente num plongée fechado sobre sua nuca. Nesse sentido, em tal perspectiva, observamos sua cabeça pendida, seus ombros caídos. O cansaço de toda uma vida de obrigações e compromissos, encontrando seu ápice no conclave que a posição na hierarquia eclesiástica o obriga a organizar.
Entretanto, em momentos específicos da trama, e absolutamente justificados por ela, Lawrence renasce, exultando a cada vitória obtida sobre algum pretendente a Papa que abusou do poder em sua pretensão de ser eleito Sumo Pontífice.
Em resumo, a atuação de Ralph Fiennes, aliada à maneira como Berger o filma, faz parte dessa estrutura de construção de mundo que sustenta o trabalho de Berger. “Conclave” tem como centro a ambiguidade de uma instituição perdida entre servir a Deus e usufruir dos privilégios do poder. Nesse contexto, Fiennes também entrega um cardeal Lawrence absolutamente ambíguo, e por isso fascinante.
A realidade amenizada
Contudo, Berger não quer polemizar. As tretas palacianas desenvolvidas em “Conclave” passam longe, em gravidade, da realidade dos crimes perpetrados pela Igreja católica ao longo de sua história. Estes já foram bastante documentados, alguns sendo levados ao cinema em ficção e documentários, como o poderoso “Sugarcane” (2024), de Julian Brave NoiseCat e Emily Kassie, candidato do Canadá ao Oscar deste ano.
Mas, em “Conclave”, os problemas não vão muito além de uns padres que burlam o celibato e outros que traem os companheiros de batina. A resolução deles por Lawrence, afastando candidatos fortes mas indesejáveis ao Papado, sempre se acompanha de um olhar sutil de vitória.
As reações dos atingidos pelas artimanhas de Lawrence para afastá-los da corrida ao trono de São Pedro, sempre seguidas da auto congratulação de Lawrence, são muito divertidas. Tanto que em alguns momentos não consegui deixar de gargalhar com prazer, sem nenhuma empatia pelas “vítimas” das artimanhas do cardeal.
“Conclave” é engraçado porque é verdade
A cada vez que Lawrence se regozija consigo mesmo de seu poder e inteligência, reforça-se nossa impressão de que é impossível a ele safar-se do desejo e do prazer de comandar. De fato, a recusa de Lawrence em ser votado no conclave vai sendo ressignificada ao longo do filme, deixando de ser um sinal de convicção ética para ser apenas um disfarce para alguém que aos poucos está deixando de reconhecer uma tarefa árdua para se permitir um lugar de privilégios absolutos.
Essa ambiguidade, essa humanidade que desnuda aqueles personagens tão poderosos em suas batinas bordadas a ouro, é um dos sentidos de “Conclave”. O segundo sentido, que emerge, atravessa quase todas as cenas e também estrutura o filme, é outra desnudação. Agora, a instituição milenar é que está nua, recusando-se a varrer um grão de sua poeira, mal se cobrindo com o manto já roto de suas verdades dogmáticas. Com efeito, essa recusa é posta à condição de ridículo por Berger e seu excepcional elenco.
Contudo, também não posso deixar de reconhecer que parte do meu riso e minha diversão ao assistir a “Conclave” vem da total verossimilhança e possibilidade da situações criadas no filme. A propósito, sobre isso, um grande amigo sempre oportunamente cita uma das maravilhosas frases de Homer Simpson, que neste texto cabe perfeitamente: “Conclave” é engraçado porque é verdade.
Ficha Técnica

Direção: Edward Berger
Roteiro: Peter Straughan, Robert Harris
Edição: Nick Emerson
Fotografia: Stéphane Fontaine
Design de Produção: Suzie Davies
Trilha Sonora: Volker Bertelmann
Elenco: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Lucian Msamati, Sergio Castellitto, Carlos Diehz