
Criaturas da Mente
Na véspera de assistir a “Criaturas da Mente”, de Marcelo Gomes, eu tive um sonho. Sonhei que comunicava uma notícia muito importante sobre mim para uma interlocutora. Mas qual não foi minha surpresa quando, no sonho, essa pessoa me disse que já sabia o que eu havia acabado de lhe contar. O choque dessa revelação foi tão grande que acabei acordando.
Mais tarde, pensando sobre isso, concluí que o que me fez interromper o sonho não foi o fato de minha interlocutora já conhecer o que eu lhe relatei. O fato de que ela saber de algo que eu julgava ser apenas do meu conhecimento revelou minha falta de controle sobre o que os outros sabem, e, por consequência, pensam, sobre mim. Justo eu, que conto vantagem de não ser uma pessoa controladora. Portanto, meu sonho me obrigou a encarar a Ana Flávia controladora que existe dentro de mim, e eu não sabia.
“Criaturas da Mente” é sobre essas outras pessoas que existem dentro de nós. Elas de vez em quando dão o ar de sua graça quando não estamos naquilo que supomos ser o domínio absoluto sobre nossa vontade e nosso pensamento. Sobre esse tema, os estudos sobre os sonhos de Sidarta Ribeiro e sua equipe na UFRN são o foco do trabalho de Marcelo Gomes. Eles abrem um horizonte interessante de discussões que ao fim e ao cabo nos ajudam a ampliar nosso conceito de ciência. Com isso, podemos verificar o que há de científico nas crenças e no conhecimento que muitos acreditam estar fora da forma ocidental de pensar o mundo e o ser humano.
Quem está falando nos sonhos?
Os sonhos são matéria de estudo pelo ser humano desde que o mundo é mundo. Com efeito, das opiniões mais míticas até os achados das neurociências, passando pela Psicanálise, são inúmeras as formas de falar sobre eles. Isso permite que até os ateus mais empedernidos possam falar um pouco sobre o que sonham. Posso aqui resumir que, basicamente, mas basicamente mesmo, há duas linhas-mestras de interpretação dos sonhos. A partir delas, inúmeras outras linhas se desenrolam.
Há a linha que descreve os sonhos como manifestação de outras individualidades através de nós, ou mensagens que outras pessoas nos transmitem durante o sono. Essa é a interpretação corrente das hipóteses míticas e religiosas. A outra linha é a que define os sonhos como manifestações simbólicas de nossa própria individualidade, graças ao fato de que nossa psique se desdobra em planos de consciência que alguns recalcam menos, outros mais, mas que se revelam quando não estamos no domínio do nosso discurso.
Quanto a esta segunda linha, não precisamos necessariamente estar dormindo para que esses outros planos de nossa individualidade se manifestem. A Psicanálise Freudiana definiu o conceito de ato falho para identificar acidentes no discurso do analisando em que seu inconsciente se manifesta, escapando do controle social que normalmente aplicamos sobre nossa linguagem.
“Criaturas de mente” não propõe abordagens psicanalíticas para as diferentes camadas de consciência, mas busca expandir para além de uma ciência materialista a ideia de que nos desdobramos em diferentes selves que se manifestam em outros planos para muito além daqueles que recebem controle social.
“Criaturas da Mente” gira em torno de Sidarta Ribeiro
O eixo do desenvolvimento das ideias promovido por Marcelo Gomes é sempre Sidarta Ribeiro, o que transforma sua obra numa espécie de narrativa que mapeia as (auto)descobertas do pesquisador. Durante sua vida, Sidarta (estou usando seu primeiro nome como referência porque é assim que ele é conhecido pelo meio acadêmico e científico brasileiro) passa de biólogo a neurocientista, e daí para um intelectual interessado não apenas nos sonhos, mas também em reconhecer por que formas nos desdobramos em diferentes selves, e quais são os meios capazes de nos trazer conhecimento sobre nós mesmos e enfrentar desafios de vida que muitas vezes o tempo em vigília não nos permite alcançar.
Para isso, o ponto de partida de Sidarta é a constatação de que os seres humanos não são a única espécie capaz de sonhar. Se animais tão diferentes de nós, como os cefalópodes, podem sonhar, o que se dirá de cetáceos de cognição mais desenvolvida, como as orcas e os golfinhos, e primatas como chimpanzés.
Seu segundo ponto é o de que os sonhos não são a única prática humana que manifesta nossos outros selves, ou, como ele nomeia tão poeticamente, nossas criaturas da mente. Processos como os transes religiosos e alterações de consciência provocadas por psicodélicos também teriam esse mesmo efeito. Em ambos os casos, pondero, há algo em comum. Embora não possamos controlar qual, digamos “entidade”, seja ela outro ser, seja ela nós mesmos, se manifestará, podemos controlar uma hora e um local definido para sua “vinda”. No caso dos sonhos, porém, essas manifestações seriam livres e sem qualquer planejamento.
Não sabemos mais como nos perder
Ou seja, temos, de certa maneira, uma certeza da necessidade de deixar as criaturas da mente emergirem, mas precisamos controlar essa vinda de todas as formas que pudermos, como se tivéssemos medo do que pudesse aparecer sem permissão. E acho que temos muito medo, mesmo.
Nesse ínterim, entra outra figura importante em “Criaturas da Mente”, que é Ailton Krenak. O intelectual indígena contribui para ampliar ainda mais o espaço aberto por Sidarta para compreendermos os mistérios dos nossos selves que recalcamos tanto. Para Krenak, já temos condições de perceber que o mundo que construímos, cada vez mais apartado da natureza, cada vez mais coberto de carapaças para nos protegermos, nos tornou insensíveis, cegos e surdos de nós mesmos.
Esse mundo do controle, surgido e funcionando para que alguns lucrem, nos fez desaprender de nos perder. Detestamos a ideia de estarmos perdidos, sem rumo, sem objetivo. Precisamos sempre saber para onde ir, saber o que fazer. Precisamos sempre de algum sentido. Uma vida assim nos desconectou das inteligências da natureza, embora inequivocamente façamos parte dela. Mas fizemos o percurso contrário: passamos a separar natureza, cultura e tecnologia, como se essas duas últimas viessem de outro lugar que não este planeta e seus ecossistemas.
Marcelo Gomes idealizou “Criaturas da Mente” porque, durante a pandemia de COVID-19, ele deixou de sonhar. Sendo ele um artista, seu incômodo logo se transformou em inspiração. Nesse sentido, seu fazer artístico se mostra absolutamente coerente com sua busca pelo conhecimento que seu documentário pretendia divulgar. Todas as pessoas por ele entrevistadas, bem como seu eixo temático personificado na figura de Sidarta Ribeiro, manifestam profundo conhecimento pelo que já se pesquisou sobre a mente humana, mas reconhecem a imensa incompletude que há nas ciências desencarnadas.
Os poderosos não querem que a gente durma
O que “Criaturas da Mente” revela às pessoas é um esgotamento, um cansaço mesmo, das totalizações de mundo a partir da perspectiva do ser humano. Uma perspectiva, preciso salientar, branca, rica, masculina e capitalista. Esse esgotamento não parece ser reconhecido pelos donos do dinheiro e do poder. Em sua ânsia de lucro, eles não apenas desprezam o sonho como também atribuem um valor negativo ao ócio, ao descanso, e ao próprio sono. Para eles, melhor seria que nem dormíssemos.
Daí a disseminação do senso comum que incute nas pessoas a ideia de que dormir é coisa de preguiçoso: “trabalhe enquanto os outros dormem”. Quem acredita nisso é porque não sabe que durante o sono o cérebro realiza atividades específicas, como a consolidação de padrões neurais, segundo trabalhos do próprio Sidarta Ribeiro.
“Criaturas da Mente” mostra a necessidade premente de uma marcha-à-ré no percurso que nos levará ao abismo. Essa meia-volta já tem um guia, uma escuta: é a que vem de nós mesmos, de nossas criaturas escondidas, que precisamos aprender a ouvir. Mas isso só acontecerá quando o trabalho passar e significar arte, e não escravidão. Então, que venha a renda básica universal!
Ficha Técnica

Direção: Marcelo Gomes
Roteiro: Letícia Simões, Marcelo Gomes
Edição: Fabian Remy
Fotografia: Ivo Lopes Araújo
Trilha Sonora: O Grivo
Elenco: Sidarta Ribeiro, Ailton Krenak