Crip Camp: Revolução pela Inclusão
Última atualização: 13/04/2021
Logo no início de Crip Camp: Revolução pela Inclusão, documentário de James Lebrecht e Nicole Newnham disponível na Netflix, Lebrecht afirma: “Esse acampamento mudou o mundo, mas ninguém conhece essa história”. Essa frase, talvez exagerada no início, provou ser verdadeira quando as crenças e práticas do Camp Jened tornaram-se conhecidas através do documentário do próprio Lebrecht. Além disso, seu filme, agora, consolida para a posteridade o trabalho iniciado naquela colônia de férias no nordeste dos Estados Unidos, que infelizmente não existe mais.
Fiz questão de transcrever essa frase porque ela, a meu ver, resume à perfeição o trabalho realizado por Lebrecht e Nicole Newnham. No filme, a mudança do mundo aparece como o círculo mais amplo de uma série de outros formados em sequência, como o que acontece quando se joga uma pedra n’água. Entretanto, o filme não mostra apenas uma expansão de ideias e ações em termos de compreensão e alcance intelectual e político.
Como as melhores histórias, essa expansão também diz respeito a uma crescente intensidade dos acontecimentos. Com isso, nossa empatia aumenta minuto a minuto, culminando em um clímax que nos obrigada às lágrimas. Ou, talvez, somos nós que queremos chorar mesmo, apenas para mostrar que sim, ao contrário dos políticos profissionais, entendemos tudo o que seus protagonistas querem dizer.
Crip Camp: Revolução pela Inclusão é um filme sobre o desejo
Não que aquilo que eles disseram seja novidade. Assisti a Crip Camp: Revolução pela Inclusão pensando em um dos projetos sociais mais importantes da história do Brasil, que é o Bolsa-Família. Pesquisadores de diversas áreas já estudaram as transformações coletivas que uns poucos reais dados todo mês a mães de família de classes menos favorecidas acarretaram. Contudo, há uma mudança que, embora não prevista pelo programa, é um grande impulsionador social: o desejo.
Assim, libertas da necessidade de pensar no que vão comer a cada dia, as pessoas tornam-se livres para desejar mais. Tornam-se corajosas para assumir que merecem mais do que o pouco que a vida lhes dá. O Camp Jened foi para os jovens que lá passavam as férias o grande impulsionador do seu desejo. Lá, elas podiam viver como o que fato são: seres humanos desejantes, mesmo que fora dali lhes berrassem que sua condição física os tornava algo menos que pessoas.
Mas esse desejo não se limitava à sexualidade vivida com alegria e sem culpa pelos jovens do Camp Jened. Ele é um desejo de potência, que encontra uma barreira cruel na vida pública que lhes proíbe, na prática, até o direito elementar ao exercício de ir e vir. Contudo, o que o filme nos comunica é que, mesmo já existente, esse desejo encontra linguagem e direção na experiência do campo. Assim, a mudança do mundo falada por Lebrecht não poderia acontecer sem o encontro das mentes que a vida plena em Camp Jened lhes proporcionou.
Nenhum filme este ano terá melhores imagens
A afeição dos jovens pelo campo e suas inúmeras vivências se materializa na quantidade gigantesca de imagens que Crip Camp: Revolução pela Inclusão nos oferece. Assisti ao filme imaginando quantas imagens ficaram excluídas pela edição – algumas delas certamente maravilhosas. Nelas, e com inegável maturidade, os jovens manifestam com precisão o sentimento e os aprendizados que o lugar lhes proporcionou. Nada além daquilo que lhes é direito: existirem como pessoas, comportarem-se como pessoas, ouvir e serem ouvidas, amar e serem amadas. Isso no país das oportunidades para todos, onde na realidade, já sabemos, esse “todos” é quase ninguém.
O gigantesco acervo segue pelo tempo, onde se abrem os novos círculos do desejo, agora como sentimento e ação coletiva. Com isso, analogamente, expande-se também a esfera social e política de presença dos campistas, agora ativistas. A essa expansão, como eu disse, soma-se o sentimento que acompanha a certeza da legitimidade de um direito, o que agrega ainda mais pessoas.
A nós, brasileiros, essas imagens e depoimentos verdadeiros mostram que a ideia de que somos exclusivos na miséria material e moral não se valida. Os estadunidenses também têm a sua Barbacena. Também não se furtam a enlouquecer de vez, pelo tratamento sub-humano, os que uma dada classe considera pessoas que precisa esconder, e corpos que deseja apagar. As imagens e a sequência dos movimentos dos ativistas nos mostram também que, em todo lugar, nenhum direito está dado; ele é sempre conquistado com luta e esforço, e mesmo assim pode ser perdido a qualquer momento. Algo que, infelizmente, hoje sabemos bem.
Todos são protagonistas
Documentários candidatos ao Oscar deste ano têm incorporado estruturas de produções do Cinema e também da TV – reality shows, filmes de ficção. Alguns deles, como Collective, chegam a ter protagonistas com arcos narrativos iguais ao que vemos nos filmes. Porém, Crip Camp: Revolução pela Inclusão é um caso precioso de protagonismo coletivo, que salta da tela e abraça o espectador por meio dos sentimentos verdadeiros que o desejo das pessoas nos desperta.
Evidentemente, existem pessoas que se sobressaem mais na ampliação desses movimentos. Entre elas, Judi Heumann ocupa o centro da tela desde os tempos do campo. Sua liderança é reconhecida pelos ativistas, que em torno dela se sentem fortes para esforços cada vez maiores. Além disso, sua união também permite a expansão de esferas de atuação conjunta dos vários grupos de pessoas com necessidades especiais. Por sua vez, esses grupos aumentam cada vez mais, abrindo espaço para novas ideias e realizações.
Por fim, o protagonismo coletivo que Crip Camp: Revolução pela Inclusão apresenta também é uma muito bem-vinda expansão de esferas de pensamento. Rompem-se perspectivas ideológicas hegemônicas, em que as pessoas que não cabem em padrões de desempenho físico estão limitadas à condição de objetos de estudo e observação. Com isso, elas se mostram como agenciadoras não apenas de seus próprios destinos, mas também da própria feitura do filme. Embora ainda falem de si mesmas e de sua dor, revelam também seu desejo coletivo, que agora se amplia em sua vivência como seres humanos em plena potência.
Direção: James Lebrecht & Nicole Newnham
Roteiro: James Lebrecht & Nicole Newnham
Edição: Andrew Gersh
Fotografia: Vicente Franco
Trilha Sonora: Bear McCreary
Elenco: James Lebrecht, Denise Sherer Jacobson, Judith Heumann, Nanci D’Angelo, Dennis Billups, Lionel Je’Woodyard, Joseph O’Conor & Ann Cupolo Freeman
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