Crônicas do Irã

Por Susana de Castro
Última atualização: 14/07/2024

Seria cômico se não fosse trágico

A comédia dramática Crônicas do Irã (2023), de Ali Asgari e Alireza Khatami, retrata de forma tragicômica a vida em um país teocrático. Ao todo, temos oito pequenas histórias que retratam o cotidiano na capital do Irã, Teerã. A câmera fica parada, dirigida à personagem da história, substituindo na maioria das vezes a pessoa com quem a personagem está se comunicando: uma diretora de escola, um policial, uma funcionária do serviço de trânsito, um empresário da construção civil, um funcionário de cartório de registro civil, um produtor de cinema. Apenas no segundo esquete, contudo, a perspectiva ocupada pela câmera é a de um espelho. Em todos, vemos o desespero estampado no rosto das personagens diante das solicitações estapafúrdias de seus interlocutores, representantes legais das instituições publicas e privadas do Irã.

Crônicas do Irã é uma clara denúncia da forma como o Estado teocrático avança na esfera privada das pessoas determinando como elas devem chamar seus filhos na hora de registrá-los no cartório; como devem se vestir corretamente, principalmente meninas e mulheres, até mesmo dentro do carro; a história que podem ou não contar, se são roteiristas de cinema; se podem ter ou não cachorros; se jovens estudantes de uma escola para meninas podem ou não namorar; se homens podem ou não usar tatuagens embaixo de suas roupas.

O filme mostra claramente que estamos lidando com uma sociedade de vigilância. Os funcionários das empresas privadas não estão apenas entrevistando novos funcionários para saber se possuem a competência necessária ao emprego, mas avaliando sua devoção religiosa. Igualmente, os funcionários públicos não estão apenas prestando um serviço à população, mas também vigiando se, em sua esfera privada, dentro de um carro, embaixo de suas roupas, elas seguem as regras morais e de costumes ditadas pelo Alcorão.

O pesadelo kafkiano

Se os burocratas percebem qualquer sinal de ocidentalização, a pessoa já se torna suspeita: se está com uma blusa de Mickey Mouse, se quer dar um nome ocidental a seu filho que acaba de nascer, se é uma mulher que usa cabelos curtos ou pintados, se é um homem tatuado.

Assim, em cada esquete, o expectador pode acompanhar a incredulidade com a qual cada personagem escuta as perguntas e explicações que lhes são solicitadas. É como se todos estivem em um pesadelo kafkiano, no qual as coisas mais simples, como tirar uma carteira de motorista, fazer uma entrevista de emprego, fazer um registro policial ou civil, virasse uma odisseia sem fim.

Além disso, há uma clara alusão à difícil situação das mulheres no Irã. Desde a criança que gosta de dançar, mas é obrigada a vestir roupas que lhe cobrem todo o corpo e lhe impedem o movimento, à adolescente que é vigiada na escola se chega com um namorado, passando pelo roteirista que quer narrar a brutalidade com a qual o pai tratava sua mãe, e pela jovem solteira que é claramente assediada na entrevista de emprego. Todas essas situações mostram claramente que não é fácil ser mulher no Irã.

O filme inicia com um plano da cidade vista do alto, do amanhecer até a noite, e termina com a sua destruição por um terremoto. No último esquete, pela primeira vez, a câmera vira de posição e se dirige para o ‘burocrata’. Vemos a um senhor bem velho, que não fala nada, em seguida a câmera vai em direção à janela, e assistimos ao terremoto derrubando prédios. Podemos dar vários sentidos a essa cena não falada.

A deterioração interior

Leio a cena como um retrato de um sistema que permanece inabalável enquanto as fundações estão sendo internamente corroídas. Com efeito, não importa a geração, todos estão tentando sair da prisão do controle e vigilância do Estado islâmico, seja com tatuagens, cabelos curtos ou pintados, música, dança e nomes ocidentais, histórias de denúncia à violência doméstica contra as mulheres, animais domésticos. Dessa forma, até quando as estruturas do Estado teocrático permaneceram inabaláveis, essa é uma questão que fica em aberto.

Lançado em 2023 e filmado em apenas uma semana, Crônicas do Irã é uma resposta clara ao que ocorreu em 16 de setembro de 2022, quando Mahsa Amini, natural da região do Curdistão, foi detida em Teerã, acusada de “usar roupa inapropriada” pela chamada polícia da moralidade, uma unidade responsável por observar o cumprimento do pesado código de vestimenta.

Três dias depois, ainda sob custódia policial, ela foi levada a um hospital com ferimentos severos na cabeça, e morreu logo depois. A morte gerou uma onda de manifestações no Irã e no mundo contra as normas rígidas do governo iraniano às mulheres.

P.S.: recomendo a leitura do livro A revolução ignorada, liberação da mulher, democracia direta e pluralismo radical no oriente médio, para quem deseja saber mais sobre a luta das mulheres no Curdistão.


Ficha Técnica
Ayeh Haye Zamini (2023) – Irã
Direção: Ali Asgari, Alireza Khatami
Roteiro: Ali Asgari, Alireza Khatami
Edição: Ehsan Vaseghi
Fotografia: Adib Sobhani
Design de Produção: Hamed Aslani
Elenco: Bahram Ark, Servin Zabetyian, Sadaf Asgari, Faezeh Rad

 

 

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