Deserto particular
Última atualização: 17/12/2021
Quando pretendo escrever sobre algum filme ou série, leio outros materiais sobre essa obra apenas depois de terminar meu texto. No caso de Deserto particular, de Aly Muritiba, cliquei no Google buscando imagens, e títulos de críticas sobre o filme me apareceram na tela. A rigor, elas mencionam sua importância como resposta (e que resposta) à investida fascista, e todas as suas causas e efeitos, sobre o Brasil nos últimos anos. No mínimo, esse fator é dado como o contexto ausente, mas presente, da narrativa.
Do mesmo modo, meu texto se junta às resenhas que articulam a história intimista selecionada para representar o Brasil na disputa ao Oscar de filme estrangeiro ao plano histórico e social do Brasil contemporâneo. Certamente não devo dizer nada além do que outros já terão mostrado. Escrevo para deixar registrado meu orgulho de assistir a um filme feito por homens, sobre homens e para homens, num total encaixe de lugar de fala, e também de timing epistemológico, sem abdicar de uma gigantesca beleza que permanece em nosso coração.
O fascínio de Deserto particular vem de, entre muitos outros motivos, ser um filme sobre uma masculinidade que pensa sobre si mesma, sem medo de suas contradições. E, em adição a isso – talvez por isso -, incorpora à sua forma um questionamento temático do patriarcado hegemônico e imutável por séculos, perdurando até o Brasil de 2021.
O patriarcado fracassou sozinho
Escrevo este texto sob o impacto da morte da intelectual estadunidense bel hooks. A filósofa é um dos nomes mais relevantes do feminismo negro nos séculos 20 e 21. Penso ser imprescindível observar isso porque, mesmo sendo Deserto particular um filme com princípio e fim no masculino, não haveria possibilidade de ele existir não fosse o avanço epistemológico proporcionado pelo feminismo negro.
É no âmbito dessa teoria que se institui o corpo como objeto conceitual definidor de construções de mundo. E, igualmente, enxerga-se o corpo como onipresente e balizador de toda a história humana desde a criação do patriarcado. A existência do corpo como conceito é a razão de ser de Deserto particular.
O filme aproveita até as últimas possibilidades essa ideia expandida de corpo para descrever a degeneração do patriarcado no Brasil contemporâneo. Nos primeiros cinco minutos de filme, Aly Muritiba deixa evidente a que seu filme veio. E o parâmetro para definir seu norte é o corpo e seu entorno.
Deserto particular conta histórias sobre corpos
Diversas marcas materiais fornecem a descrição imediata e completa de Daniel (Antônio Saboia), um dos protagonistas do filme. Sua mão direita engessada sugere uma lesão auto-infligida. Essa hipótese se reforça com as notícias que chegam sobre ações que praticou. Seu próprio corpo, forte e robusto, já sugere sua capacidade de imposição pela força.
Policial militar, Daniel também é filho de sargento da mesma corporação, essa espécie de templo da masculinidade hegemônica tupiniquim. Sobre a cama do pai, um terço gigantesco deixa a mensagem do completo encaixe daqueles personagens aos emblemas do patriarcado hegemônico: moral, bons costumes, ordem, poder.
Seu pai, entretanto, personifica a decadência desse poder, o que faz com que a casa de Daniel seja uma espécie de microcosmo-mausoléu do Brasil atual. É a imagem do patriarcado judaico-cristão degradado que reage violentamente às mudanças que detesta, porque entrevê nelas ameaças a sua hegemonia milenar.
Muritiba personifica essa decadência também no corpo idoso do pai de Daniel. Ao fazer isso, permite-nos a leitura de que o patriarcado vai de mal a pior não apenas porque outras forças o confrontam. Ele também se deteriora por seus próprios vícios e equívocos. E também porque seu tempo já está acabando.
O desprezo à ética em privilégio da moral
Igualmente, escrevo este texto sob o impacto da edição do podcast da Folha de São Paulo Café da manhã dedicada ao mais novo Ministro do STF, o “terrivelmente evangélico” André Mendonça. Nessa edição, o teólogo Ronilso Pacheco, do Manhattan College, de Nova York, descreve várias das condições de possibilidades para a presença cada vez mais ubíqua das ideologias do Velho Testamento, inclusive em propostas de políticas públicas no Brasil.
Pacheco sugere a interpretação de que há um espaço favorável a que a moral, campo de conhecimento de ordem pública e base da epistemologia do Velho Testamento, se imponha sobre a ética, campo do conhecimento de ordem íntima e de consciência, e base da epistemologia do Novo Testamento. Sob a égide da moral, os corpos se tornam valores importantes, porque se tornam públicos, visíveis. Nesse sentido, a consciência e a noção de bem e mal, que deveriam pertencer apenas à esfera particular, passam a abarcar também o comportamental.
Isso faz com que, nos tempos de retrocesso civilizatório, nossa sexualidade (evidentemente, não incluo aqui a violência que se disfarça de sexo, como o estupro e a pedofilia) transfira-se da ordem do desejo, ou seja, da ética, para a ordem do comportamental, ou seja, da moral. Em suma: quem você deseja ou deixa de desejar é algo pelo qual você deve prestar contas aos outros.
O que fazer com os corpos que não se encaixam?
O que torna as vidas desérticas em Deserto particular não é apenas as paisagens áridas e calorentas, filmadas e filtradas de forma a torná-las ainda mais incômodas, como incômodos passam a ser os corpos que expressam uma espécie específica de desejo: aquele pelo qual os personagens serão condenados.
Essa desertificação interior também resulta de um desvio da atenção daquilo que deveria ser apenas uma questão de sentimentos. Esses nada importam; cedem sua prioridade aos comportamentos (noto mais uma vez como as ideologias reacionárias não estão preocupadas hora nenhuma com a dimensão ética, embora se digam cristãs), agora passíveis de medicalização.
O outro corpo em questão, o de Sara/Robson (Pedro Fasanaro) é o corpo-desafio para o patriarcado. Atualmente, ele é reconhecido pelos estudos que desmembram biologia, cultura e desejo. Mas não se encaixa na perspectiva reacionária, que não compreende esse desmembramento e ainda insiste na manifestação pública do corpo como a única legítima. O problema de corpos como o de Sara/Robson é que, mesmo “doente”, ele ainda desperta desejo. E o desejo é algo com que o patriarcado não sabe lidar.
Deserto particular anuncia novos tempos
Penso em como Deserto particular se irmana e se complementa a Ataque dos cães, de Jane Campion, em sua descrição do masculino como força que se impõe apagando alteridades. Feito por mulher, Ataque dos cães é mais pessimista, por colocar sob o holofote a sobrevivência da figura do macho dominador mesmo quando seu desejo escancara o contraditório. Deserto particular, talvez por nos ser oferecido em um tempo de algumas luzes já no fim do túnel de nossa tragédia imediata, pode ser visto como indicador da abertura de pequenas brechas de pensamento.
Nesse sentido, me agrada imaginar um cotejo com as imagens de pobreza que circundam a história de Daniel e Sara/Robson. Essa pobreza nos caracteriza, e nós brasileiros a conhecemos muito bem. Porém, mesmo em meio a esse universo, os personagens ainda são capazes de ver beleza e esperança, possibilidades de vida. Talvez seja esse o caminho. Mudam-se as mentes, muda-se o que corre abaixo do radar dos “terrivelmente evangélicos”, para que mudanças macropolíticas, mais amplas, sejam possíveis.
É assim que interpreto a lindíssima imagem que ilustra, como destaque, meu texto: o encontro de duas pessoas simbolizando o encontro entre forças e elementos que apenas juntos trarão a fertilidade necessária aos novos tempos que ainda podemos construir.
Direção: Aly Muritiba
Roteiro: Henrique dos Santos, Aly Muritiba
Edição: Patricia Saramago
Fotografia: Luiz Armando Arteaga
Design de Produção: Fabíola Bonofiglio, Marcos Pedroso
Trilha Sonora: Felipe Ayres
Elenco: Antônio Saboia, Pedro Fasanaro, Thomas Aquino, Zezita Matos, Luthero Almeida