desobediência

Desobediência

Última atualização: 19/08/2021

Desobediência é uma obra do diretor chileno Sebastián Lelio, conhecido do grande público também por Uma mulher fantástica, ganhador do Oscar de filme estrangeiro em 2018. Desobediência mantém o enquadre recorrente do diretor, visto em Gloria (2013) e na refilmagem de seu próprio filme, Gloria Bell (2018). O foco está sempre sobre as mulheres da contemporaneidade e seus sentimentos e conflitos existenciais. E, no caso de Desobediência, Leilo mescla esse tema com a religião, que desde sempre esteve ligada ao patriarcado.

Na primeira cena do filme, um rabino desenvolve sua preleção numa sinagoga abordando a ideia do livre arbítrio. Segundo o religioso, ele seria uma propriedade concedida por Deus exclusivamente aos seres humanos. Sua fala acaba sendo interrompida, porque ele cai desmaiado em função da doença que o matará. Entretanto, seu conteúdo já é suficiente para que possamos construir a premissa que definirá o tom do filme. Lelio propõe uma discussão sobre a vida como sendo pautada por escolhas.

Weisz e Nivola

Essa premissa é fortalecida com o próprio título da obra. Assistimos a uma narrativa em que as escolhas em questão dizem respeito a obedecer ou desobedecer a modelos previamente instituídos de vida íntima e social. Tais modelos têm sido ditados há séculos pela religião – judaica ou qualquer outra, tanto faz. Praticamente todas giram em torno de controles sobre os comportamentos humanos em todas as esferas.

Desobediência é sobre como a religião trata o desejo

O cenário em que o rabino realiza sua preleção também reforça a premissa do filme. Durante sua fala, os assentos da sinagoga não estão todos ocupados. Os lugares vazios, tão importantes quanto os preenchidos, evidenciam que estar ali ou não ouvindo o rabino, entre outras práticas relacionadas ao judaísmo, também é uma escolha. Que, evidentemente, acarretará efeitos e consequências profundas e abrangentes na vida de quem escolheu, já que não lhe é possível envolver-se apenas parcialmente com sua religião. Ou se está completamente dentro, ou completamente fora. Meios-termos não são aceitos.

Para o tema das escolhas de vida e suas consequências, Sebastián Lelio focaliza a amizade entre três jovens judeus: as moças Ronit (Rachel Weist) e Esti (Rachel McAdams), e o rapaz Dovid (Alessandro Nivola). O relacionamento entre eles se complica em função daquilo que por séculos tem sido um dos maiores objetos de controle das religiões patriarcais: o desejo, em particular o desejo sexual, mas não apenas o desejo homoafetivo. Mesmo o sexo publicamente autorizado pelo casamento também é controlado, a fim de que não haja qualquer brecha para que o fiel desconfie se fez a escolha certa ou não. O problema, claro, é quando ele começa a desconfiar.

Weisz

Optando por não realizar flashbacks e mostrar os personagens se reencontrando no momento atual após longa separação, Lelio é brilhante em deixar explícito, mas sempre de forma sutil e delicada, o grau de intimidade e afeto a que chegaram essas três pessoas no passado: na surpresa feliz de se reencontrarem, nos gostos em comum que compartilharam, na vontade de se tocarem fisicamente, na menção a fatos que marcaram suas vidas juntos e nas iniciativas de estarem em presença umas das outras, mesmo em momentos de constrangimento.

Escolhas que produzem efeitos

Igualmente, e em consonância com a premissa que construímos já na primeira cena do filme, fica muito evidente também o desconforto que o reencontro lhes causa e o fracasso das tentativas de realizar alguma concessão ao momento, ao lugar e às pessoas que giram em torno deles durante os dias em que precisam estar juntos para as homenagens ao rabino morto, pai de Ronit. Esse desconforto, que evolui para um conflito insuperável, advém justamente das escolhas que fizeram quando foram chamados a elas: Dovid e Esti escolheram obedecer, mas Ronit escolheu desobedecer, e ser portanto uma das ausências entre os assentos da sinagoga.

As consequências de sua escolha para a comunidade judaica da qual participava por nascimento logo começam a ser sentidas por ela em sua breve visita. Embora não rejeitada fisicamente pelos membros em geral de seu antigo grupo, ela é lembrada a todo momento de que não mais pertence àquele lugar, nos vários sentidos que esse pertencimento comporta, e no conforto e proteção que perdeu por ter se apartado dele. Para os que escolheram permanecer na comunidade, não é possível a Ronit ser feliz na condição de pária. Ronit, por sua vez, não enxerga qualquer chance de felicidade entre aquelas pessoas. Eles a renegam, mas ela os renega também.

Nivola

Da mesma forma, Esti e Dovid também são forçados a lidar com os efeitos da vida em obediência às regras judaicas, que conduzem diuturnamente suas vidas. Dovid não sente esses efeitos de forma muito evidente. Isso ocorre porque as religiões de base patriarcal garantem poder e proeminência social aos membros do sexo masculino. Portanto, fica mais difícil enxergar numa primeira vista o quanto o machismo que essas religiões encerram oprime e afeta destrutivamente a vida dos homens.

Sebastián Lelio é um cineasta das questões femininas

Mas para Esti a vida é muito mais difícil, o que fica inequívoco com a atuação complexa e espontânea de Rachel McAdams. A personagem necessita reprimir completamente seu desejo e justificar-se com frágeis argumentos que não resistem à primeira discordância. Enfrenta um desequilíbrio abissal entre a vida infeliz que lhe impuseram e o pouco que tem de compensação. O sentimento recalcado que explode com a presença de Ronit permitem à atriz construir a personagem com o arco mais interessante do filme. Sua atuação em meio a esses conflitos todos é um presente fino aos espectadores e representa um passo adiante eu seu amadurecimento artístico, algo que temos testemunhado com prazer ao longo dos últimos anos.

Mas preciso salientar que os trabalhos dos dois outros atores que constituem o triângulo principal do filme favorecem o desempenho de McAdams: Rachel Weist e Alessandro Nivola. Junto com McAdams, eles embarcam com inteligente precisão na sutileza e no registro contido, às vezes sufocado, mas liberado nos momentos cruciais, que Sebastián Lelio imprime à narrativa. Os momentos-chave são sempre definidos sem exageros interpretativos, o que está de acordo com o universo controlado da comunidade em que os personagens se criaram.

Por que nos identificamos com Desobediência

A ausência de exageros tem também a vantagem de abrir espaço em nossa mente para identificarmos outra das grandes qualidades do filme. Desobediência dá o valor devido às ideias abordadas e sua importância em nossa vida. Afinal, quase todos nós nascemos e crescemos sob alguma denominação religiosa. Por isso, temos às vezes de renunciar ao que mais desejamos por crermos na promessa divina de proteção durante a vida e salvação depois da morte. E isso muitas vezes requer que amputemos nossas partes mais interessantes.

Weisz e McAdams

Nesse sentido, o livre arbítrio propagado pelo rabino na primeira cena do filme é falacioso. As religiões judaico-cristãs, com base no mito do Éden, pregam que a escolha por obedecer a preceitos milenarmente imutáveis concede ao fiel tudo o que há de supostamente bom na vida. E a escolha em desobedecer a eles priva o infiel de tudo aquilo que Deus concede aos que acreditam nele e estão dispostos a sacrificar sua auto-gestão e seu prazer para obterem proteção e amparo. A liberdade existe, mas quem ousará pagar seu preço?

Da religião ao fundamentalismo

Desobediência torna-se um filme ainda mais importante quando nos damos conta do momento histórico perigoso que o mundo todo enfrenta neste momento. Governantes e candidatos a governantes fascistas prometem proteção em troca de controle total sobre a vida pública e íntima de sociedades inteiras. A escolha entre eleger ou não governantes fascistas e fundamentalistas implica uma outra escolha, ainda mais pesada. Trata-se da escolha que há entre, de um lado, poder continuar a fazer escolhas ao longo da vida e, como qualquer adulto, responsabilizar-se por elas. Ou, por outro lado, não mais poder fazer escolha nenhuma, delegando essa prerrogativa a outras pessoas, acreditando que elas podem fazer isso melhor que nós.

Um dos problemas produzidos por religiões como aquela em que Ronit, Esti e Dovid se criaram, e isso fica evidente numa das falas de Esti, é o de estabelecer uma dada verdade. Não existe nenhuma forma possível de viver sem ser aquela em que escolhemos ser tutelados. Assim, desperdiçamos a vida obedecendo, não apenas a Deus, mas também a pais, governantes etc. E acabamos usando nosso livre-arbítrio exatamente para abrir mão dele. Será que vale a pena? Essa pergunta extremamente atual e urgente é o centro temático de Desobediência. Sebastián Lelio compõe uma obra praticamente obrigatória como elemento de discussão para os que buscam bússolas éticas em tempos de perdição emocional, política e social.

Desobediência está disponível na Netflix.


Ficha Técnica
Disobedience (2017) – Irlanda, Reino Unido e Estados Unidos
Direção: Sebastián Lelio
Roteiro: Sebastián Lelio, Rebecca Lenkiewicz
Edição: Nathan Nugent
Fotografia: Danny Cohen
Design de Produção: Sarah Finlay
Trilha Sonora: Matthew Herbert
Elenco: Rachel Weisz, Rachel McAdams, Alessandro Nivola, Anton Lesser, Allan Corduner, Nicholas Woodeson

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2 comentários em “Desobediência

  1. Concordo plenamente. Acrescento ainda que, através do comportamento e da situação dos personagens Dovid (Alessandro Nivola) e Esti (Rachel McAdams), é possível detectar como uma religião usa sua influência para assediar psicologicamente seus fiéis. É fato que ambos fizeram uma escolha em um certo momento da vida, mas é visível que a igreja induziu o casal a essa escolha através da promessa de uma ascensão social. Realmente uma discussão extremamente necessária nos dias de hoje.

    1. É verdade… Há a aparência de uma escolha, mas à pessoa não são dados elementos suficientes para ela pesar cada alternativa.

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