Dying – A Última Sinfonia
Nós seres humanos temos como característica básica a capacidade de categorizar tudo o que existe à nossa volta. Tudo mesmo, inclusive a Arte, o Cinema. Organizar o mundo em categorias nos ajudou a construir tudo o que nos permite viver em sociedade. Mas às vezes somos muito rígidos nessa tarefa, insistindo em colocar em caixinhas até o que não entraria nelas de jeito nenhum. Principalmente aquilo que resulta da criatividade humana, aquilo que não cabe em formatos pré-estabelecidos nem pode ser chamado por termos já dados. Isso acontece com Dying – a Última Sinfonia (2024), do alemão Matthias Gleiser.
Digo isso porque muitos que escreveram sobre Dying – a Última Sinfonia insistiram em classificá-lo com base em seu enredo – defino enredo aqui como a resposta a que chegamos ao fazer perguntas como Quando? Onde? Com quem? Por quê? Para quê? etc. diante de uma dada história. Levando em conta que Dying – a Última Sinfonia gira em torno de uma família que muitos consideraram disfuncional (ora, qual família não é…), a tendência comum foi classificar o filme como um drama familiar. Mas nada pode estar mais longe da verdade.
Dying – a Última Sinfonia é um filme excepcional por muitas qualidades. Uma delas é a de recusar encaixar-se em uma categoria narrativa específica. Isso não significa que o filme não seja sobre nada. É justamente por apresentar um recorte preciso sobre seu tema que é possível a Matthias Gleiser desenvolver um caleidoscópio de pequenos novelos que, juntos, desenrolarão uma tese que, por sua vez, não é conclusão nem resposta para nada. Muito pelo contrário.
Propor questões é mais divertido do que dar respostas
A Tese de Dying – a Última Sinfonia vem atrelada, como irmã gêmea siamesa, a uma questão da humanidade. Essa questão começou a se engendrar a partir do momento em que o ser humano percebeu que poderia, a partir da esfera básica de organização institucional social, a saber, a família, expandir para outras esferas institucionais mais amplas: a escola, a igreja (e análogos), as organizações civis de todo tipo, os partidos políticos, as ordens profissionais, as forças armadas etc. Em resumo: construir uma civilização.
O ser humano é a única espécie do Planeta Terra capaz de construir uma civilização. Evidentemente, outras espécies se organizam em sociedades. Mas suas esferas sociais nunca se expandiram em torno de um centro comum, e nem há previsão de que o façam. O mapeamento dos genomas já comprovou a continuidade genética entre os seres humanos e as outras espécies. Portanto, em gigantesca medida, também somos como os outros animais, com instinto, necessidades fisiológicas. Também estamos no mundo para cumprir um ciclo: nascer, crescer, reproduzir e, ao fim, morrer.
Mas a civilização que construímos nos afasta cada vez mais das outras espécies, fortalecendo o que de mais singular e humano podemos construir: a Ciência, a Filosofia, a Arte. Isso nos faz viver sempre numa tensão entre o que, como humanos, podemos criar e transformar, e o que, como animais, seguimos repetindo e atavicamente perpetuando. Em resumo: de um lado, operamos a transcendência humana; de outro, nos sujeitamos à imanência animal. Como viver sem se perder nessa tensão, nessa mesclagem entre gente e bicho, que constitui, na falta de palavra melhor, a essência do que somos?
Para não dizer que não falei da família
Para mostrar como é difícil nossa vida divididos entre o animal e o humano, Matthias Gleiser opta por focalizar na família, a esfera civilizatória humana mais imediata, o desenvolvimento de sua questão. Melhor escolha não poderia haver. Também encontramos grupos familiares entre outras espécies de cognição mais desenvolvida, como muitos cetáceos e primatas. Todas com laços genéticos, afetivos e/de sobrevivência bastante fortes.
Entretanto, porque podemos e precisamos fazer isso, fomos sobrecarregando a família humana de uma série de responsabilidades e cobranças que nem sempre podemos atender. Além disso, as determinações morais de comportamento familiar não são freio para uma série de violências e conflitos graves que afetam seus membros às vezes para sempre. Mas o chamado da espécie ainda está lá, a servir de contrapeso, ou, não raro, de peso mesmo, peso existencial, de consciência. A família que criamos nos atrai, mas ao mesmo tempo a repudiamos. Esse paradoxo nada mais é do que um desmembramento do paradoxo de sermos bicho, e, na mesma medida, sermos gente.
A demência do pai Gerd Lunies (Hans-Uwe Bauer) obriga a que seu filho Tom (Lars Eidinger) realize uma das obrigações morais mais tradicionais da família: a de amparar os pais na velhice. Para isso, precisa lidar com a mãe Lissy (Corinna Harfouch), por quem nunca sentiu afeto – aliás, como confessado por Lissy, o desprezo é mútuo, apesar da pressão social para que se amem.
A própria Lissy, por sua vez, mal esconde o alívio em poder afastar-se do marido já em fim de vida, malgrado uma vida em comum que possa ter vivido com ele, provavelmente com alegrias e realizações.
Imanência e transcendência
É aí que Gleiser começa a revelar ao espectador o tipo de reflexão que deseja inspirar. Nada pode ser mais demasiadamente humano do que repudiar uma das obrigações mais básicas da vida, que é o amor entre pais e filhos, por mais forte que seja o instinto de cuidado, sobrevivência e proteção da espécie que nos leva a amar quem nos cuida e quem se entrega aos nossos cuidados.
Tom esforça-se por ser civilizado e distanciar-se da sina animal que o acompanha. Mesmo sendo sua mãe uma estranha, é da musicalidade que dela herda que Tom constrói sua vida profissional como maestro numa jovem orquestra de Berlim. Ou seja: vive daquilo que é construção humana por excelência, que é a Arte. Gleiser deixa evidente todo o tempo como Tom busca uma existência em transcendência, não apenas existindo em esferas institucionais mais amplas da sociedade, como também aceitando compor modelos menos atávicos de família, ao aceitar criar com a ex-namorada um filho não-biológico.
Contudo, sua irmã Ellen (Lilith Stangenberg) não se engaja nem um pouco nas conquistas civilizatórias da humanidade. Vive na e para a imanência. Completamente indiferente à família, vive para satisfazer os instintos mais imediatos – a bebida, o sexo. A musicalidade que também herda da mãe é usada apenas para divertir as pessoas de graça no bar. Comporta-se amoralmente ao conhecer um dentista casado (Sebastian Vogel), com quem desenvolve um romance com o qual afirma continuamente não se importar. Porém, no fim das contas, em algum momento o humano que reside nela cobrará sua parte.
Qual é o sentido da vida?
Desgarrados de seus genitores e também entre si, Tom e Ellen vivem vidas paralelas, mas que têm em comum essa perdição entre a transcendência e a imanência. Tom busca conquistar a transcendência, mas inevitavelmente se vê envolvido no mais básico da vida, que é o nascer, o reproduzir-se e o morrer. Ellen abraça a imanência e explicita isso, mas não resiste quando os sentimentos mais humanos a atingem – o ciúme, os recalques.
O problema é que ambos não reconhecem que, sendo humanos e bichos ao mesmo tempo, vivemos essa ambiguidade da qual não temos como fugir. Diferentemente do que pensa Tom, não podemos ser apenas humanos. E, diferentemente do que pensa Hellen, não somos apenas bichos. Porém, como vivencia Bernard Drinda (Robert Gwisdek), o compositor da obra cujo término lhe custou um sacrifício extremo, assim como os bichos, que nascem, crescem, se reproduzem e morrem, o que produzimos pela vida, o que criamos, também existirá independente de nós, como nossa descendência.
Como um filho, essa criação também marca nossa presença no mundo e sobreviverá à nossa morte. Por ela, vale a pena viver, e, sem ela, ou sem nos reconhecemos capazes de seguir produzindo, criando e nos conectando com o mundo, talvez a vida não tenha nenhum sentido.
Ficha Técnica
Direção: Matthias Gleiser
Roteiro: Matthias Gleiser
Edição: Heike Gnida
Fotografia: Jakub Bejnarowicz
Design de Produção: Tamo Kunz
Trilha Sonora: Lorenz Dangel
Elenco: Lars Eidinger, Corinna Harfouch, Lilith Stangenberg, Hans-Uwe Bauer, Robert Gwisdek, Sebastian Vogel