
Eros
O direito ao sexo
No livro O Direito ao Sexo, a autora Amia Srinivasan baseia a escolha do título no discurso de um incel estadunidense de que o estupro é algo permitido aos homens, porque eles teriam o direito de se servir das mulheres da forma que quisessem. Entretanto, assistindo a “Eros”, documentário de Rachel Daisy Ellis, imaginei a possibilidade de atribuir àquela expressão um novo sentido. Especificamente, esse sentido estaria relacionado não a uma suposta licenciosidade para violar, mas sim para exercer uma prática que está no mundo desde que existimos, mas que por várias razões nos é disciplinada, regulada, quando não negada.
Rachel Daisy Ellis levou um bolo do date no motel Eros, em algum lugar do Brasil. Apesar disso, em compensação, teve uma ideia genial. Afinal, em tempos de máxima autoexibição nas redes sociais de todo tipo, por que não chamar os frequentadores de moteis pelo Brasil para narrar e demonstrar suas experiências?
O resultado está no encantador “Eros”, que é um libelo ao direito ao sexo consensual do jeito que as pessoas quiserem fazer, com os corpos que tiverem, com os desejos que trouxerem. Com efeito, numa época de controle da vida íntima das pessoas e de ameaças teocráticas a discursos e práticas fora dos padrões judaico-cristãos, “Eros” se torna uma peça de resistência e coragem de gente que sempre encontra um jeitinho de ser livre.
Somos sempre o centro de nossas narrativas
Em 2015, o diretor estadunidense Sean Baker filmou “Tangerine”, produção independente e insurgente sobre o lumpesinato estadunidense, usando para isso um Iphone 5. Nesse sentido, “Tangerine” trouxe um frescor artístico e técnico a uma indústria desgastada pela repetição e pela dificuldade gigantesca de se libertar dos modelos por ela mesma criados. De fato, a sofisticação dos aparelhos eletrônicos pessoais, materializada no Iphone e demais smartphones, empoderou as pessoas. Munidas de seus aparelhos, elas passaram a ser roteiristas e diretoras do registro de suas vidas.
Para esse empoderamento, participou fortemente a criação de redes sociais, cada uma delas especializada em um tipo de produção pessoal e caseira. Assim, depois do boom do Snapchat, o Instagram e o Tik Tok se tornaram os pontos de encontro ideais de quem deseja se notabilizar por alguma coisa. Hoje é infinita a gama de possibilidades, inclusive profissionais, de uso dessas plataformas, mas elas ainda são o espaço de realização do desejo que milhões de pessoas têm de existirem, se expressarem e se tornarem relevantes em algo.
No comentário acerca do filme “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça, o crítico de cinema Pablo Villaça afirma que “nenhum personagem se enxerga como coadjuvante. Nenhum personagem está na periferia de uma narrativa. Ele é sempre o centro da própria narrativa”. Em “Eros”, essa ideia é levada às ultimas consequências. É importante demais reconhecer que hoje a tecnologia favorece a que as pessoas possam viver essa centralidade quando contam suas histórias. A beleza do filme emerge da concretização da possibilidade de que todos nós em algum momento da vida podemos ser muito especiais. E agora podemos construir essa especialidade quando e onde quisermos.
Pessoas comuns em performances esteticamente significativas
Por outro lado, os protagonismos de “Eros” passam pelo crivo do recorte de Rachel Daisy Ellis e da edição de Matheus Farias. Imagino a quantidade de gente que enviou material precioso para a diretora. O resultado é um leque de depoimentos de diferentes experiências e opiniões sobre o que é, digamos, a instituição popular brasileira “motel” na vida de alguns, o que é a sexualidade e o prazer para algumas pessoas, e, mais amplamente falando, o que é a vida para elas, em si.
Nota-se que os depoimentos são dados mediante um trabalho caprichado de todos. Algumas partes parecem ter sido realmente dirigidas. Havia não raro mais de um telefone, e muitos enquadramentos sugeriam até uma estética visual pensada, planejada. Estamos ali diante de verdadeiras performances, como são também altamente performáticos os vídeos a que assistimos nas redes por aí. Alem disso, ninguém pode dizer que aquelas pessoas não tiveram fartas oportunidades de ensaiar antes do trabalho final.
Mas não apenas a forma é surpreendente. Algumas presenças e falas ali também são. Eu não imaginava, por exemplo, que casais evangélicos se propusessem a se filmar no motel. E isso não apenas está lá duas vezes, como também é pedagógica a experiência de conhecer como pessoas com vidas reguladas por uma moral conservadora e patriarcal encontram caminhos e saídas para viver e realizar seu desejo de ter prazer no sexo. E se filmarem enquanto fazem isso!
Mas o sexo é o menos importante
Anos atrás, assisti à mostra do grupo multiartístico cubano Los Carpinteros, no Centro Cultural Banco do Brasil. Conheci seus trabalhos de variadas materialidades e expressões. Entre eles, havia um maravilhoso vídeo que focalizava três casais heretossexuais relacionando-se sexualmente de forma explícita, cada qual por sua vez. O que diferenciava os casais era a idade: cada um deles era de uma geração. Desse modo, os corpos perfeitos de jovens estudantes transando deram lugar a corpos de pessoas de meia idade se desejando na mesma medida. Após eles, duas pessoas já idosas também se amam sem vergonha de seus corpos já absolutamente fora dos padrões dos pornôs de costume.
“Eros” também é assim. Ellis não pretendeu fazer um filme visualmente capaz de excitar as pessoas com corpos perfeitos, jovens e sem gordura. Assim, contou com pessoas que também não estão preocupadas com a aparência de seus corpos e seu ajuste a expectativas estéticas. Na verdade, nem o sexo parece ser importante para Ellis. O que importa mesmo são as histórias e as performances de cada um.
Nesse sentido, “Eros” cativa as pessoas pela beleza de verdades que transparecem mesmo com a ideia de que o que temos ali são personagens duplamente recortados. O primeiro recorte é feito por eles mesmos em seus telefones. Depois, um segundo recorte aparece pelo trabalho seletivo de Ellis e Matheus Farias. Essas verdades corajosas, centradas na busca das pessoas pelo prazer sem romper com suas escolhas de vida, é que permanecerão em nossa memória por longo tempo depois de assistirmos ao filme.

Direção: Rachel Daisy Ellis
Roteiro: Rachel Daisy Ellis
Edição: Matheus Farias
Elenco: Marlova Dornelles e Andrade, Gabriel Soares e Hagar, Fernanda Falcão e Ribersson, Luís de Basquiat, Rachel Daisy Ellis