Esquecidos pelo Oscar
Última atualização: 10/05/2021
A temporada de prêmios de cinema nos Estados Unidos nos primeiros meses do ano tem seu ápice na cerimônia de entrega do Oscar. Assim, nos eventos que o antecedem, passamos a conhecer muitos filmes estadunidenses, mas também do resto do mundo. Sabemos que um balcão de negócios milionários sustenta a distribuição dos prêmios. Na maioria das vezes, filmes de grande qualidade são laureados, às custas de outros filmes magníficos, que chegam até a metade da corrida, alcançam seu final sem prêmios, enquanto outros sequer são indicados. Estes são os esquecidos pelo Oscar.
A lista abaixo inclui alguns filmes de 2020 que poderiam, sem nenhuma injustiça, compor o grupo de finalistas ao Oscar de melhor filme ou filme de língua estrangeira. A propósito: alguns poderiam perfeitamente ocupar o lugar de finalistas que não se comparam a eles em brilho e qualidade. Além disso, até poderiam levar o prêmio máximo, apenas por suas qualidades técnicas e artísticas. Por isso tudo, vale muito a pena assistir a eles. Ainda que tenham sido esquecidos pelo Oscar.
Isso não é um enterro, é uma ressurreição, de Lemohang Jeremiah Mosese
Representante de Lesoto na competição dos filmes de língua não inglesa do Oscar. Todavia, não chegou à segunda seleção de candidatos para o prêmio. Mas quem assistir a ele testemunhará um espetáculo visual e surpreendente em torno de uma história de imenso peso, não só filosófico como também existencial. Isso tudo tendo em torno a paisagem deslumbrante de Lesoto, lindíssimo país africano.
Antes de mais nada, é a narrativa dos griots africanos que vemos na tela. Mantoa, já velha e solitária depois da morte de todos em sua família, deseja desesperadamente morrer, enquanto sua comunidade enfrenta as forças do capital que desejam se apropriar de suas moradias prometendo uma vida melhor em outro lugar. Aos poucos, esses dois conflitos vão se encontrando numa história contada com sofisticação rara no cinema contemporâneo. A intensidade crescente dos acontecimentos que desemboca numa catarse inesquecível o torna um filme absolutamente obrigatório.
Não há mal algum, de Mohammad Rasoulof
O vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim ano passado é mais um dos esquecidos pelo Oscar que segue a tendência contemporânea de aproximar para a vida cotidiana e familiar os mais importantes dilemas e questões morais da humanidade. Na berlinda, a pena de morte. Com o fim de problematizar sua existência, quatro histórias de pessoas comuns, justamente as que têm de fazer o serviço sujo de matar após o veredito dado pelo Estado.
Me parece proposital o título do filme. É quase automático vincular a ideia de um mal que em muitos momentos do filme se disfarça, como se não existisse, com o conceito de “banalidade do mal”, cunhado por Hannah Arendt. Principalmente, ao vermos a distância imensa entre quem ordena a morte – o Estado – e quem a executa – pessoas comuns – compreendemos a naturalização da violência praticada pelos que detêm o poder, diluída numa cadeia burocrática que lhe desidrata completamente o sentido.
Notturno, de Gianfranco Rosi
Gianfranco Rosi passou três anos filmando as tentativas de retomar a vida na região que se livrou da dominação violenta e assassina pelo Estado Islâmico: Iraque, Curdistão, Síria e Líbano. Como resultado, surge um filme enxuto mas extremamente impactante. Uma das razões para esse impacto é o recorte descritivo selecionado por Rosi, que vai buscar nas práticas cotidianas a afirmação da força que permite ao ser humano superar o pior dos sofrimentos.
Uma família que perdeu seu provedor e agora depende do trabalho precário do filho mais velho, ainda adolescente. Um grupo de idosos que monta uma peça teatral para exorcizar o passado pela arte. Crianças que fazem desenhos sobre os traumas que sofreram para conseguirem superar sua dor. Soldados que protegem a terra que ainda resta. Acima de tudo, Notturno ensina a nós brasileiros que não se pode permitir a destruição material de um país para se compreender finalmente que esse país está sendo destruído. Disponível no Mubi.
Never, seldom, sometimes, always, de Eliza Hittman
É impossível não se afetar de alguma forma pela mera existência desse filme. O que singulariza essa obra excepcional é uma construção diegética que todas as mulheres reconhecerão de imediato: um ambiente constante de violência, que pode a qualquer momento ser praticada por homens contra as personagens femininas – e em muitos momentos ela acaba sendo, mesmo.
A adolescente estadunidense Autumn (Sidney Flanigan) descobre que está grávida e deseja interromper a gravidez. Entretanto, no estado onde mora isso é ilegal, então ela parte para Nova York a fim de realizar o procedimento. Todo o processo que vai da saída de Autumn de sua cidade até seu retorno é permeado pela situação de gigantesca insegurança a que ela, como mulher e jovem, está sujeita num mundo em que homens exercem seu desejo pela força. Essa violência acontece até quando Autumn está aparentemente protegida pelo Estado, que, a pretexto de ampará-la, a violenta ainda mais. Similarmente, o filme ser um dos esquecidos pelo Oscar não deixa de ser, em si, outra violência. Disponível no Telecine Play.
As ondas, de Trey Edward Shults
Filme que considerei o melhor de 2020 e sobre o qual publiquei texto no Longa História. É uma crônica de morte anunciada, uma tragédia familiar que encontra perdão e cura no amor. Certamente, muitos outros filmes tratam disso, mas As ondas o faz de uma maneira duplamente brilhante. Seu roteiro conta com elementos conceituais dos estudos em raça e gênero organicamente articulados para oferecer uma leitura contemporânea dos conflitos abordados.
Além disso, os recursos técnicos empregados para nos ajudar a compreender os estados emocionais dos personagens ao longo do filme agregam técnicas empregadas por Shults em filmes anteriores mais novos recursos que nos encantam pela inventividade e pela sensibilidade que provocam. Esses estados passam por processos de intensificação e depois acomodação que são lindamente expressos, principalmente pelo uso da câmera de Shults, que a emprega como recurso precioso para contar sua história de rancor e perdão. Disponível no Telecine Play.
First cow, de Kelly Reichardt
Um gigantesco sucesso para a crítica já acostumada ao trabalho excepcional de Kelly Reichardt. Entre outras virtudes, a fotografia naturalista nos transporta no tempo até o período de colonização da América do Norte. Somos cativados pelo clima de simplicidade que disfarça a inspiração western de First cow. Outro disfarce é a temática que foge à tradicional contenda que caracteriza o western. Aqui, trata-se de sobrevivência numa terra hostil e selvagem.
A “cow” em questão é uma lembrança da civilização numa América branca no seu nascedouro. Logo ao chegar, a vaca torna-se objeto de uma cobiça modesta de dois colonos, um deles especialista em pâtisserie. Assim, seu leite é parte da receita de um fino brioche que pode trazer riqueza aos dois. A leveza com que Reichardt conta as aventuras da dupla tem a intenção de encobrir apenas mais ou menos os perigos a que a dupla se expõe em sua empreitada culinária e surrupiadora.
Rede de ódio, de Jan Komasa
Obra que aborda um dos problemas mais graves trazidos pela revolução tecnológica da internet: a produção de informações falsas e difamatórias sobre as pessoas. Os diversos níveis de gravidade dos efeitos disso são apresentados por Jan Komasa na história de um rapaz polonês pobre que ascende socialmente através de golpes virtuais baseados na mentira e motivados pelo ódio. Nesse sentido, a destruição que ele provoca nesse caminho pode, sim, acontecer na vida “real”.
Os paralelos entre as sociedades polonesa e brasileira são óbvios. Analogamente, há, por exemplo, a presença da disputa política fartamente patrocinada, estimulando a criação de fake news sobre pessoas públicas e adversários. E, do outro lado, a ação de uma pessoa excepcionalmente inteligente, mas com a patologia de se importar apenas consigo mesmo e não considerar as consequências cada vez piores de seus atos. A rede do ódio precisa ser visto como provocador de aprendizados sobre os imensos perigos da vida virtual na contemporaneidade. Disponível na Netflix.
A vastidão da noite, de Andrew Patterson
Um filme que merece menção na lista de esquecidos pelo Oscar principalmente por ser bem ajustado à temporalidade cinematográfica contemporânea. São enxutíssimos 91 minutos de duração, numa narrativa ágil e fluida. Isso se dá graças sobretudo a uma montagem composta em grande parte por lindíssimos planos-sequência, combinados com planos fixos que se aproximam dos personagens, fazendo com que, além de apaixonados pela velocidade impactante da câmera, nos cativemos com suas histórias.
Inspirado em Twilight zone, A vastidão da noite explora os sentimentos dos espectadores diante de um desconhecido que apenas se insinua através de sua maravilhosa edição de som. Dialogando com nossos conhecimentos sobre filmes e séries de suspense, o filme deixa apenas algumas pistas sobre os acontecimentos que aterrorizam os protagonistas. Andrew Patterson conta com nossa imaginação para preencher as lacunas cuidadosamente desenhadas. Com efeito, A vastidão da noite mostra que a tradução brasileira de Twilight zone, “Além da imaginação”, está muito longe da verdade: nossa capacidade de imaginar é infinita. Disponível na Amazon Prime Video.
Destacamento blood, de Spike Lee
O filme mais recente de Spike Lee segue o fio de sua discussão intelectual sobre racismo. Lee segue um caminho diferente da grande maioria das obras cinematográficas atuais sobre o tema. Em virtude disso, enquanto muitas abordam a variável de gênero no diálogo, Lee sempre recorta uma perspectiva sócio-histórica. Especificamente, como a sociedade estadunidense se constituiu ao longo dos séculos sobre o trabalho escravo, e os efeitos sociais e legais disso.
Durante a guerra do Vietnã, o destacamento (autodenominado) Blood era formado por soldados negros. Lee insere a participação dos afroamericanos no contexto maior da gigantesca revolta dos cidadãos estadunidenses, grande parte deles ativistas negros, contra essa guerra. Lee lembra que o racismo daquela época sobrevive no século 21. Por isso, cenas antigas de violência sobre pessoas negras se somam à violência ainda praticada sobre os estadunidenses negros atualmente. No centro desses movimentos narrativos, está Paul (Delroy Lindo, numa das melhores atuações do Cinema em 2020). Disponível na Netflix.
Transtorno explosivo, de Nora Fingscheidt
O título em português deste excelente filme comete o grave erro de enquadrar numa dimensão individual a história de uma criança com a qual o sistema de educação alemão não sabe lidar. Entretanto, o título original, “System crasher”, expressa um sentido muito mais relevante. A saber, a ideia de que um sistema social poderoso, de um dos países mais ricos do mundo, na verdade é tão frágil que pode ser abalado em suas estruturas por uma menina de menos de dez anos.
É de cortar o coração constatar a solidão emocional de uma criança que só sabe reagir com violência a situações de frustração e tristeza. Além disso, as pessoas que, na falta dos pais, buscam ampará-la acabam sendo impedidas de fazer isso pelas rígidas regras do sistema. Com isso, “Transtorno explosivo” acaba por revelar que a estrutura institucional criada para proteger uma criança acaba fazendo, ao fim, com que ela seja ainda mais abandonada.