estou pensando em acabar com tudo
Última alteração: 12/11/2020
Se você ainda não viu estou pensando em acabar com tudo, veja. Eu aviso quando o texto tiver spoilers, mas provavelmente você vai aproveitá-lo mais se tiver assistido ao filme primeiro.
A maneira como Charlie Kaufman enxerga o mundo pode ser questionável, mas é constante. Nos filmes que escreveu (Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, Quero Ser John Malkovich e até o pirotécnico Adaptação) e nos que também dirigiu (Sinédoque, Nova York e Anomalisa), a atmosfera é sempre de uma melancolia depressiva. Seus protagonistas são homens sensíveis demais para não se deixarem afetar pela dureza do mundo. Ao mesmo tempo, são fechados demais para se abrirem ao risco da felicidade. São como aquele meme da bicicleta.
estou pensando em acabar com tudo é uma evolução desta “filosofia”, mas ainda um filme coerente na obra do nova-iorquino. Brincando com elementos de terror – a “casa mal assombrada” é quase um clichê do gênero -, Kaufman volta à sua “pergunta fundamental”: a vida vale a pena?
Um pouco de filosofia
Kaufman não está sozinho nessa busca. Para Albert Camus, filósofo francês nascido na Argélia, antes de debater qualquer questão existencial, é preciso debater a própria existência. Para racionalizar sobre o suicídio, ele escreveu um livro inteiro: O Mito de Sísifo.
Recomendo fortemente a leitura de Camus. Mas, para você não desistir da minha leitura, o resumo da conclusão de O Mito de Sísifo é: a vida não faz sentido. Mas o desafio à falta de lógica e a teimosia em seguir vivendo trazem propósito e felicidade à vida.
Para Camus, a felicidade está dentro de nós. Mas e para Charlie Kaufman?
estou pensando em acabar com tudo e a felicidade projetada
Se a protagonista aparente de estou pensando em acabar com tudo é a uma mulher (Jessie Buckley), essa ilusão se dissolve aos poucos. Creditada como “Jovem Mulher”, Buckley não é uma personagem – spoilers a seguir -, mas uma representação genérica de todas as mulheres que passaram pela vida de Jake (Jesse Plemons). Jake é o protagonista do filme. Kaufman o “esconde” dando destaque à Jovem Mulher, mas o que vemos dela é uma interpretação feita por Jake.
Logo na primeira interação entre o casal, a Jovem Mulher reflete para si “estou pensando em acabar com tudo”. Compreender que esta – mais um spoiler – é uma lembrança de Jake, a forma como ele interpreta aquele silêncio hoje, é a “digital na cena do crime” dos filmes de Charlie Kaufman. Neles, a felicidade não está dentro, mas fora. Ela é projetada em outra pessoa. E, se algo dá errado, é porque “estava condenado ao fracasso desde o início”.
Em resumo: a vida não vale a pena.
Quem somos – e quem é Charlie Kaufman?
Conversando sobre o filme com minha amiga de redação Ana Flávia, ela me apontou para um traço de misoginia nessa tese “kaufmaniana”. Afinal de contas, sua carreira se resume a homens responsabilizando mulheres pela própria infelicidade. Não cabe a mim (homem, cis, heterossexual etc.) definir o que é ou não misoginia. Mas me interessa a discussão do que Kaufman entende sobre a Humanidade e as opiniões que deixa aparecer no próprio trabalho.
A memória, tema central em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, é até mais marcante em estou pensando em acabar com tudo. Quando todos os nossos relacionamentos dão errado, faz diferença quem era a poetisa, a física ou a pintora? Se os nossos pais sempre foram um fardo, importa com que idade eles estejam? Nossas memórias não são registros históricos. Elas passam por um filtro sentimental associado a cada acontecimento. Com o tempo, as memórias têm cada vez menos fatos e mais emoções. Menos dos outros e mais de nós mesmos.
Resta questionar se Kaufman concorda com a visão melancólica de seus protagonistas. Acredito que não. Sinto que ele tem genuína empatia por eles. A propriedade com que escreve sobre o assunto talvez indique que ele tenha uma experiência própria na causa. Mas nas conclusões, invariavelmente, ele deixa indícios de que os círculos viciosos em que seus protagonistas se colocam não são a saída. Ao menos, que não são a única saída.
Nisso, Kaufman e eu concordamos: o ser humano tem uma dificuldade colossal de olhar para dentro de si e assumir responsabilidades. Se “o mundo é injusto”, não é preciso mudar. Romantizar a própria tristeza é um caminho mais fácil. E rende uns filmes bacanas.
Direção: Charlie Kaufman
Roteiro: Charlie Kaufman
Edição: Robert Frazen
Fotografia: Lukasz Zal
Design de Produção: Molly Hughes & Merissa Lombardo
Trilha Sonora: Jay Wadley
Elenco: Jesse Plemons, Jessie Buckley, Toni Collette, David Thewlis & Guy Boyd