Eu me Importo (com o quê?)
Última atualização: 23/02/2021
Eu me Importo é uma das traduções possíveis para I Care a Lot, título original do último filme de J Blakeson. A outra tradução seria algo como “Eu cuido muito”, outro significado da palavra care. Apesar de ausente no título em português, a ironia desse duplo sentido está presente em Marla Grayson, interpretada por Rosamund Pike. Guardiã legal dos idosos julgados incapazes para cuidar da própria vida, ela tem muitos deles sob o seu cuidado, sem efetivamente se importar com nenhum. Se tem uma coisa em que I Care a Lot é muito bem-sucedido, é em mostrar como os idosos são despersonalizados pelo sistema. Por exemplo: para o juiz que concede a guarda à Marla, eles são papéis em um tribunal. Para a própria Marla, eles são cifrões.
Aliás, esse é um conceito que já tinha ficado mais ou menos claro com a pandemia, que transformou idosos em estatísticas. É fácil nos fazer esquecer que pessoas são, bom, pessoas, com uma história de vida, relacionamentos e vontades. Ironicamente, essa é a principal falha de Eu me Importo. Porque, apesar do filme ser povoado por figuras interessantes, há um problema quando se tenta transformar esses personagens em pessoas. Essa dificuldade fica especialmente clara na construção de Marla Grayson, que apesar de estar presente em quase todas as cenas, é subaproveitada. Tenho alguns palpites sobre o porquê disso.
A garota exemplar
Rosamund Pike é conhecida por muita gente como Amy Dunne, protagonista do filme Garota Exemplar, de David Fincher. Naquele filme, Pike também interpreta uma mulher-vilã. Digo mulher-vilã porque, tanto no filme de Fincher quanto no de Blakeson, as protagonistas se utilizam de estereótipos femininos para executar seus planos. Em Garota Exemplar, é o papel da esposa-grávida-traída; em Eu me Importo, é a mulher-cuidadora. Não é por acaso que em todas as cenas no tribunal Marla entra em confronto com homens, que não têm um “instinto maternal”. Como os dois filmes pisam em terrenos similares, Amy Dunne serve para sedimentar Marla Grayson. Esse paralelo já estabelece Marla como uma mulher-vilã, antes mesmo que o filme comece.
E, não tenham dúvidas, Eu me Importo se beneficia dessa associação. Mas também se prejudica. Porque, apesar desse estabelecimento pré-filme ser valioso, uma hora o filme tem que efetivamente começar. Quando assistimos a Eu me Importo, assistimos a Eu me Importo, e não a Garota Exemplar. É aqui que está um dos erros do filme. O papel de Amy Dunne é tão marcante porque, ora bolas, Rosamund Pike é uma atriz excelente. Que, infelizmente, é subaproveitada por J Blakeson, que não permite que o público efetivamente veja Pike atuando. A culpa disso? O enquadramento.
O problema da forma
Marla Grayson é uma mulher poderosa, que não teme nada. Ela é uma pessoa que domina qualquer situação em que se encontra, de uma audiência judicial a um encontro com a máfia. No entanto, esse elemento da trama não é mostrado de forma satisfatória. Quase todos os enquadramentos do filme são feitos em meio primeiro plano (quando a atriz é filmada do peito para cima) ou primeiro plano (quando só a cabeça e a parte superior dos ombros aparecem). Não entendeu o que isso significa? Tenha calma, eu explico. Ou melhor: eu mostro.
Na foto acima, você vê um exemplo de primeiro plano. É de uma das primeiras cenas, em que Marla confronta o filho de uma “cliente” no tribunal. Essa cena é especialmente irritante porque muito da linguagem corporal da atriz se perde. Dá para intuir que Pike está gesticulando enquanto interpreta suas falas, mas o público não consegue ver nada disso, e fica só com o seu rosto. Não pretendo dizer que primeiros planos são inúteis, ou simplesmente irritantes. Na verdade, esse excesso de utilização deles é próprio da era do streaming, com a exibição de filmes em qualquer dispositivo, inclusive num celular, cuja tela é muito pequena para cenas amplas.
Entretanto, cabe à direção de qualquer filme avaliar quando a proximidade é efetivamente necessária. Eu me Importo se beneficiaria bastante da inclusão de mais planos afastados, e, para ilustrar esse ponto, incluo uma captura de um dos (poucos) enquadramentos mais espaçosos.
Há uma diferença sensível entre as duas imagens. Nessa última, é possível ver como Grayson domina o ambiente, e é a leoa citada no monólogo inicial, que divide a sociedade entre leões e cordeiros. Aliás, essa divisão nos leva ao terceiro ponto da análise. O mito por trás de Marla.
O sonho americano
Há um outro filme, chamado Sniper Americano, que também categoriza a sociedade. As ovelhas, fracas; os lobos, predadores; e os cães pastores, protetores. Nos dois filmes vemos protagonistas que, embora pratiquem atos terríveis, são legitimados pelo sistema. Marla até enfrenta essa contradição: segundo ela, somente inescrupolosos vencem. A sua versão do sonho americano é a dos bilionários. Ela não conhece limites: dez milhões são uma boa quantia para ‘começar a vida’.
Depois dessa descrição minuciosa, é seguro dizer que Marla é uma pessoa ruim. Ou seja: Eu me Importo é um filme sobre uma pessoa ruim. Mas a culpa que falta à Marla parece sobrar ao filme. A impressão que fica é de que Eu me Importo sente vergonha da sua protagonista. Na verdade, J Blakeson explicou que queria fazer um filme divertido. Para isso, o diretor tenta inserir a “diversão” na personalidade de Marla, o que é um erro quando se trata de uma pessoa definida pela ruindade.
Com isso, o problema de enquadramento extrapola a forma, e alcança o tom dado à protagonista. Ela é frequentemente romantizada (especialmente através da sua esposa), e há até uma oposição entre ela, que usa um taser como arma, e o personagem de Peter Dinklage, que usa revólveres. Essa oscilação no tom fica clara no final, que eu não vou revelar, mas deixa um gosto de… O que devo sentir? É uma pena que o filme não tenha se comprometido com a maldade de Marla. Porque poderia ser divertido mesmo assim. Afinal, Garota Exemplar conseguiu.
Direção: J. Blakeson
Roteiro: J. Blakeson
Edição: Marck Eckersley
Fotografia: Doug Emmett
Design de Produção: Michael Grasley
Trilha Sonora: Marc Canham
Elenco: Rosamund Pike, Peter Dinklage, Elza González & Dianne Wiest
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