Feels Good Man
Última atualização: 24/11/2020
A ligação entre artista e obra é um tema mais complexo do que parece. A partir do momento em que uma obra ganha o mundo, ela sai da esfera de controle de quem a concebeu e se sujeita às intervenções do público. É assim, por exemplo, com filmes: neste meu texto de Feels Good Man, posso debater ideias não planejadas pelo diretor. Podemos discutir a validade do meu posicionamento (lembrem-se: sempre com gentileza), mas uma coisa é certa: ele é um reflexo do documentário. É essa possibilidade de mudança a partir das interpretações do espectador que retira a obra do poder do artista. No caso de Matt Furie, a questão vai além do controle, e a intervenção do público se transformou em um verdadeiro pesadelo.
O nascimento de Pepe
Feels Good Man conta a história da ascensão e queda de Pepe. Concebido como um sapinho fofo, o girino atingiu a sua maturidade como um ícone da extrema-direita que se tornou parte da lista de símbolos do ódio. A biografia de Pepe se entrelaça com a trepidação que as democracias modernas têm vivenciado na última metade dos anos 2010. A história desse ícone caído revela o que há de pior na internet: a segurança que o anonimato proporciona a quem dele usufrui e a insegurança daqueles que são vitimados pelos anônimos.
A primeira cena do documentário mostra Matt Furie em frente a uma lagoa segurando um sapinho. Na cena seguinte, vemos Matt desenhar Pepe e falar sobre as dificuldades da concepção de personagem. Pepe surgiu nos quadrinhos Boy’s Club, criação de Furie que discute as dificuldades do início da idade adulta (ou fim da juventude). Mas a vida de Pepe tomou proporções estranhas com a viralização de uma tirinha em que ele faz xixi em pé, com a bermuda abaixada e o bumbum aparecendo. Quando os amigos perguntam o porquê de se fazer xixi assim, Pepe responde: feels good man (em uma tradução livre: “é bacana, maninho”). Ou seja: como no nascimento de todos nós, o surgimento de Pepe no mundo dos memes envolve vulnerabilidade, inocência e… nudez.
A memetização de Pepe
É curioso que justamente essa tirinha tenha sido a primeira a viralizar. Pepe fazendo xixi de um jeito não muito ortodoxo traz uma quebra muito bem-vinda a uma ideia rígida de masculinidade. O nicho em que a tirinha viralizou, de comunidades de ratos de academia (os famosos marombeiros), deixa tudo ainda mais peculiar. O bordão feels good man passou a aparecer em situações diversas, de memes de gatinhos a um vídeo constrangedor de um adolescente dançando. Pepe se tornou um símbolo de qualquer tipo de comportamento desviante que, por um motivo ou outro, “é bacana, maninho”. O problema começou quando a gentileza foi subtraída, os memes de gatinhos pararam e sobrou só o comportamento estranho.
O sapinho que nasceu gentil se tornou um ícone do fórum 4Chan, espaço virtual em que todos os usuários são anônimos. O anonimato serviu de catapulta para todo tipo de comportamento odioso: desde insultos em fotos a memes violentos direcionados a minorias. Pepe se tornou um ícone e, nas eleições estadunidenses de 2016, o então candidato Donald Trump chegou a tuitar uma versão dele mesmo como o sapo. À época, os usuários do fórum vibraram com a referência; eles haviam conseguido ‘memetizar a política’.
O fim (?) de Pepe
A segunda metade do documentário retrata os esforços de Furie para tentar salvar Pepe, com campanhas virtuais e processos por direitos autorais. Sem sucesso, Furie decidiu matar Pepe em 2017, com uma tira de uma página. Mas o Pepe sepultado é o mesmo que já tinha morrido quando a gentileza se desvinculou do seu personagem. É o Pepe vulnerável, que faz xixi com o bumbum de fora e joga videogame com os amigos. Quando estava escrevendo este texto, entrei no 4Chan para ver se achava algum Pepe (não recomendo) e, claro, lá estava ele: dessa vez todo azul, fantasiado de um personagem de Avatar. Esse outro Pepe, que esqueceu da gentileza e se revoltou contra a própria vulnerabilidade, continua vivo.
Ele continua vivo porque memes são difíceis de matar. Não é que eles sejam imortais, eles só… se espalham muito rápido. A própria palavra meme tem a ver com compartilhamento. Ela foi criada por Richard Dawkins, no livro O Gene Egoísta, e se refere à propagação de uma cultura pela imitação. No caso de Pepe, ele deveria propagar a cultura de aceitação da vulnerabilidade, mas acabou espalhando o ódio e a intolerância. E essa transformação até que faz sentido; tentar afogar a própria vulnerabilidade é uma ótima forma de se encher de ódio.
É preciso ter coragem para ser vulnerável. Fazer xixi com o bumbum de fora não é tão fácil quanto parece, ainda mais quando se é jovem, com muita coisa a provar para o mundo. Mas, não sabendo que era impossível, Pepe foi lá e fez. Feels Good Man é muito bem sucedido em ressuscitar o Pepe gentil. O Pepe que se diverte com os amigos e não vê problema em ser diferente. O Pepe que faz xixi de um jeito único porque… É bacana, maninho.
Direção: Arthur Jones
Roteiro: Giorgio Angelini, Matt Furie, Arthur jones & Aaron Wickenden
Edição: Drew Blatman, Katrina Taylor & Aaron Wickenden
Fotografia: Giorgio Angelini, Kurt Keppeler, Guy Mossman & David Usui
Design de Produção: Giorgio Angelini
Trilha Sonora: Ari Balouzian & Ryan Hope
Elenco: Matt Furie, Stephen Colbert, Robert Barnes, Hillary Clinton, Samantha Bee, Emilly Heller & Alex Jones