Homem com H

Um dos vídeos clássicos da história da música brasileira é o do grupo musical Secos e Molhados performando “Sangue Latino” na televisão na década de 1970. Fiquei muito surpreso ao constatar que isso foi gravado e exibido no auge da ditadura militar no Brasil. O vídeo faz parte da divulgação do primeiro disco da banda, também chamado “Secos e Molhados”, lançado em 1973. É incrível imaginar que, em uma época de repressão e censura, Ney Matogrosso afrontou a sociedade e sobretudo o exército, ao rebolar com a cara pintada em plena rede nacional. Toda essa coragem e diversos outros desafios que o artista encontrou ao longo de sua vida estão contados no excelente “Homem com H” (2025), de Esmir Filho.

Jesuíta Barbosa impecável como Ney Matogrosso em "Homem com H".
Jesuíta Barbosa impecável como Ney Matogrosso em “Homem com H”.

“Homem com H” é uma biografia sem medo de ser o que é

O longa narra a vida de Ney Matogrosso (Jesuíta Barbosa) desde a sua infância, vivendo em uma vila militar com um pai violento e autoritário. Acompanhamos seus primeiros interesses por artes, artistas e música, passando pelas suas descobertas sexuais e entendendo sua própria arte. Sua relação com Secos e Molhados, bem como com outros artistas como Cazuza e Gonzaguinha. Passamos também pelos terrores da epidemia de AIDS que ocorreu na década de 1980 e levou diversos artistas famosos à morte.

Uma das coisas que mais me surpreendeu foi que “Homem com H” não teve medo de mostrar todas as peripécias da vida do cantor. Apesar de alguns artistas e bandas, como o Queen em “Bohemian Rhapsody” (2018), de Bryan Singer e Dexter Fletcher, polirem suas biografias, deixando-as com uma cara mais “família”, Ney Matogrosso parece não ter medo de colocar sua vida na tela. Pelas histórias e mesmo e pelo que vemos de suas apresentações, era possível ter uma ideia do que ele “aprontou” nos bastidores. Entretanto, eu não esperava que mostrassem isso de forma tão direta. Isso foi um grande acerto. Certamente irá chocar as pessoas mais conservadoras, assim como tem sido toda a arte de Ney Matogrosso.

Jesuíta Barbosa

 

Um filme com imagens sensoriais

Visto isso, assim como em um filme de terror bem feito, em que as cenas de morte e violência vêm com um objetivo bem claro, as cenas de sexo de “Homem com H” também servem ao roteiro e ao que se propõe. E, para nos aproximar da experimentações sexuais de seu protagonista, o diretor coloca a câmera em lugares que deixam a imagem muito poética ao focar no pele com pele, no toque. Assim, é quase possível sentir o cheiro do contato. Logo, essas cenas vêm para ilustrar quão perto o artista esteve de contrair AIDS, inclusive por se relacionar sexualmente com pessoas que morreram com o vírus, como o próprio Cazuza.

E o mais interessante é que tudo isso é contado de uma forma muito viva, quente e apaixonada. Cenas como a apresentação para a TV de “Sangue Latino”, a criação da clássica capa das cabeças sobre a mesa no disco de estreia de Secos e Molhados, ou os shows do cantor, todas receberam um trabalho muito primoroso. É como se pudéssemos voltar no tempo e gravar essas cenas com as câmeras de alta resolução que temos hoje. Por todas essas questões, para além das músicas, as imagens nos transportam para um passado que muitos, como eu, sequer viveram.

Capa original do disco de Secos e Molhados (1973)
Capa original do disco de Secos e Molhados (1973)

Jesuíta Barbosa encarna Ney Matogrosso

Assim, é importante destacar a interpretação de Jesuíta Barbosa como Ney Matogrosso. Confesso que, quando vi alguns trechos da atuação nos trailers, estava com receio de ficar muito caricato. Ney tem uma forma muito peculiar de se mover e falar, mesmo fora dos palcos. Contudo, Jesuíta conseguiu como poucos incorporar o artista. Gestualmente, era como ver o próprio Ney dar uma entrevista para o Serginho Groisman numa noite de sábado no “Altas Horas”. Ponto também para o figurino e a maquiagem, que conseguiram reproduzir com fidelidade o que o cantor usava. Nos momentos em que vemos Jesuíta com as pesadas maquiagens, quase não acreditei que se tratava de outra pessoa que não o próprio Ney.

Em resumo, conforme eu disse anteriormente, “Homem com H” é um filme sensorial. Da mesma forma, é sobre revisitar um passado que muitos de nós não vivemos, mas sempre estamos vendo em reportagens na televisão. Sobre um artista que utilizou seu próprio corpo como resistência em uma época muito “careta” e que recentemente, estivemos bem próximos de ver acontecer novamente. Acredito que Esmir Filho soube entender muito bem o artista e transformá-lo em imagens. É um filme que merece ser experimentado com todos os sentidos.


Ficha Técnica

Homem com H (2025) – Brasil
Direção: Esmir Filho
Roteiro: Esmir Filho
Edição: Germano de Oliveira
Fotografia: Azul Serra
Design de Produção: Patrícia Galucci
Trilha Sonora: Gui Amabis, Rica Amabis
Elenco: Jesuíta Barbosa, Rômulo Braga, Hermila Guedes, Ney Matogrosso

 

Publicado Por

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *