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Imperdoável

Última atualização: 19/12/2021

Uma semana após o impacto provocado por Ataque dos cães, de Jane Campion, a Netflix lançou Imperdoável, o mais novo trabalho de Sandra Bullock na plataforma. Havia uma certa expectativa acerca dos resultados da incursão da alemã Nora Fingscheidt, diretora do excelente System Crasher (2019), no cinema estadunidense. O elenco bastante talentoso (Vincent D’Onofrio, Viola Davis e um Jon Bernthal inusualmente meigo) também prometia duas horas de, no mínimo, entretenimento diferenciado. Infelizmente, porém, o filme não resiste a uma comparação não apenas com Ataque dos cães. Perde também para o filme que poderia ter sido.

Sempre converso com amigos cinéfilos acerca de duas dentre as muitas categorias de filmes com problemas. Há filmes que revelam uma, digamos, proposta narrativa (na falta de expressão melhor) que resulta muito aquém do que seus realizadores poderiam (e já puderam, em ocasiões anteriores) concretizar. E há os que resultam de uma proposta ruim, problemática em termos de roteiro, atuação, linguagem etc., ou tudo isso junto.

Alguns amigos me dizem que o filme que pretende algo e não consegue entregar é pior do que aquele que não pretende ser lá grande coisa. De todo modo, é muito decepcionante quando um filme medíocre, resultante de proposta também medíocre, é realização de quem já fez coisa muito melhor.

Imperdoável não diz a que veio

Insiro Imperdoável na categoria dos filmes que sequer resultam de proposta narrativa medíocre, porque nem consegui identificar sua proposta. Imperdoável é um daqueles filmes que não diz a que veio. Não se define como narrativa. Como salientarei, esse problema se manifesta basicamente no roteiro, e resvala para vários outros elementos na tela.

Bullock imperdoável 1

Mas também insiro Imperdoável na categoria de filmes que decepcionam, porque Nora Fingscheidt já brindou a plateia com Cinema top de linha. A memória que temos de System Crasher é a melhor possível; por sinal, a lembrança desse filme é algo que Fingscheidt faz questão de despertar no espectador em Imperdoável. Por exemplo: em mais de uma ocasião algum personagem cita a palavra “sistema”.

Nada mais previsível: eu também me orgulharia demais de ter feito um filme como System Crasher, e não me furtaria a lembrar o espectador disso. O filme é a revelação contundente de que um dos países mais ricos do mundo fracassa ao lidar com uma menina de nove anos. E que, na tentativa de protegê-la, acaba por fazer com que ela sofra mais ainda.

System Crasher é uma obra de arte impressionante. Do primeiro ao último minuto, envolve o espectador numa atmosfera de tensão pelos perigos que sua pequena protagonista vive e provoca, mesclada à imensa compaixão que ela nos desperta – não apenas ela, mas todos os que junto com ela sofrem. Em suma: é uma impotência coletiva escancarada num desfecho em que todo mundo perde.

Porém, nada dessas virtudes, nada dessa autoralidade inesquecível, que permanece em nossa memória tempos depois do filme, se pode encontrar em Imperdoável.

Imperdoável segue a cartilha do cinema comercial contemporâneo

O problema que descrevo aqui remete ao contexto maior do Cinema contemporâneo, que a rigor segue uma mesma cartilha. Diretores jovens e criativos ganham visibilidade com ideias inusitadas e originais fora do mercado cinematográfico hegemônico. Por isso, são convidados a levar seu talento para os grandes estúdios. O recente e bom Shang Chi e a lenda dos dez anéis, de Destin Cretton, é um exemplo de quando a relação entre realizadores independentes e o cinema mainstream bilionário é bem-sucedida.

Bullock e Bernthal

Evidentemente, há uma série de razões para o material empobrecido e confuso que vemos em Imperdoável, inclusive a possibilidade de que o projeto tenha sido esse mesmo. Mas, sobre isso, jamais ficaremos sabendo. Nos resta, então, avaliar e dar alguma linguagem ao que vemos em tela, já que, pelo filme, podemos reunir dados suficientes para análise.

Para isso, descreverei rapidamente o enredo do filme, algo que acho absolutamente desnecessário na quase totalidade dos meus textos. Mas, aqui, recordar a história ajuda a desemaranhar seu confuso novelo.

Vinte anos atrás, Ruth Slater foi condenada pelo assassinato de um policial, e sua irmã pequena foi dada em adoção. Ao ganhar liberdade condicional, Ruth parte imediatamente para encontrar a irmã e restabelecer contato, mas as dificuldades para conseguir isso são imensas.

Muitos temas desperdiçados

Observe o leitor que esse breve fio já abre espaço suficiente para uma série de desenvolvimentos capazes de, cada um deles, sustentar uma obra no mínimo interessante. Há, por exemplo, a questão da consciência de ter tirado a vida de uma pessoa, e, num plano externo, o que isso representa para família, amigos etc. A maravilhosa série Rectify (2013-2016) organiza seus trinta capítulos em torno desse tema, e é um documento essencial em prol da argumentação contra a pena de morte.

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Há também a perspectiva de discussão do hiato existencial de uma pessoa que passa décadas fora da sociedade e depois precisa se adaptar às transformações a sua volta. Rectify também aborda isso de maneira profundamente emocionante. E há, por fim, mas sem esgotar as possibilidades, a questão de mulheres no cárcere sofrendo o abandono afetivo e a invisibilidade social que as acompanha durante e depois de sua pena. Um filme excepcional sobre isso é Leonera (2008), de Pablo Trapero.

Pois bem: Imperdoável tenta trabalhar essas três questões, mas as embaralha de forma tamanha, que não conseguimos compreender a relação entre elas, e nem o filme permanece em cada uma tempo suficiente para haver algum aprofundamento mínimo de qualquer ideia. Ou seja, o filme parece querer dizer várias coisas, mas sua falta de foco resulta em nada sendo dito.

O roteiro de Imperdoável foi adaptado num texto a seis mãos (Peter Craig, Hillary Seitz e Courtenay Miles sobre o texto original de Sally Wainwright), o que nunca é bom sinal. Como eu escrevi acima, os problemas do roteiro resvalam para outros elementos estruturais do filme. A começar pela caracterização da protagonista, seguindo para a construção de outros personagens e outros núcleos, e também para a causalidade dos eventos.

Sandra Bullock desistiu, mas talvez nunca tenha tentado

Gosto muito de Sandra Bullock, como quase todo mundo. Sem dúvida, a atriz é extremamente carismática e popular, e, a meu ver, realmente mereceu aquele Oscar pelo conjunto da obra. E também, claro, pelo enorme lucro que há décadas tem proporcionado à indústria cinematográfica. No momento em que escrevo este texto, Imperdoável está entre os top 10 da Netflix principalmente por causa dela.

Entretanto, desta vez, desisti de esperar que ela em algum momento embarque em algum projeto realmente relevante, como fez Benedict Cumberbatch com sua atuação poderosíssima em Ataque dos cães. Ando seriamente desconfiada de que essa nunca foi sua intenção, ainda mais depois do fraquíssimo Bird box, também da Netflix.

Bullock imperdoavel 2

Sua Ruth Slater chega a ser um desrespeito ao espectador. Ele é tratado como se não tivesse inteligência suficiente para compreender que a personagem está numa situação obviamente péssima. A bem da verdade, as caracterizações over são típicas do cinema comercial estadunidense. A cada frame do filme se faz questão de mostrar como a personagem é infeliz e sofredora. Isso é feito de forma tão ostensiva, que Ruth sequer penteia o cabelo para um encontro que decidirá seu destino.

A todo momento o olhar de Ruth é de desalento, tristeza e desesperança. Além disso, ela está sempre sendo agredida, física ou moralmente. É muito desanimador e cansativo testemunhar mais uma vez que ainda existe um Cinema que aposta apenas na caracterização – maquiagem, figurino, expressão – para comunicar o caráter ou a personalidade do personagem, em detrimento do trabalho do ator. Esse desempoderamento de Ruth sugere que falta inteligência à personagem. Mesmo durante vinte anos na prisão, parece incapaz de tecer planos de vida depois do cárcere para além da ideia de reencontrar a irmã.

Desequilíbrio de pesos

Exagerou-se tanto na caracterização de Ruth, que, quando a vemos se relacionar com as pessoas, as questões que enunciei acima emergem sempre de forma rápida e superficial. Isso não dá ao espectador qualquer noção sobre algum encaminhamento argumentativo no filme. O não aprofundamento das situações pelas quais a personagem passa, e o excesso de sentimentos negativos em prejuízo de suas intenções e vontade de sair dos lugares ruins, diminuem seu caráter de protagonismo, entendido aqui no sentido de ela ser uma pessoa capaz de agenciar suas ações.

Enquanto muito peso do filme é dado para repisar o fato de que Ruth Slater é uma coitada, os personagens em torno dela acabam sendo muito mal explicados. Por exemplo, apenas sabemos que sua irmã (Aisling Franciosi) requer cuidados porque seus parentes dizem isso o tempo todo. Ela mesma passa todo o filme sendo uma moça comum, sem nada relevante em seu comportamento. Os fatos que ocorrem com ela não a tornam especial de nenhuma maneira. E assim Franciosi não tem chance nenhuma de mostrar seu trabalho.

A opção pelo esvaziamento temático

Mas Franciosi ainda pode se consolar com a situação muito pior dos filhos do policial morto (Tom Guiry e Will Pullen), tratados pelo filme de uma maneira que chega a dar vergonha alheia. Suas ações são pessimamente justificadas, e suas mudanças de pensamento e postura não se sustentam em nenhum dado da realidade do filme.

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O caso do irmão mais velho (Pullen) é pior, porque, após décadas assumindo uma atitude serena e prudente em relação à morte do pai, de repente se reveste de um ódio por Ruth que ninguém faz ideia de onde veio. O fato que aparentemente o leva a fazer isso quase me fez desligar a TV.

Além do mais, a trama dos irmãos permanece como algo que faz sentido apenas para uma expectativa empobrecida de enredo. É como se os roteiristas precisassem de algo que conferisse um desfecho confortável à história de Ruth. Em nenhum momento os irmãos se conectam com as questões do filme – aquelas que são abertas mas não desenvolvidas.

A presença dos irmãos evidencia que roteiristas e diretora não parecem acreditar na força argumentativa dos fatos que constituem o drama de Ruth. E, também, que esses fatos poderiam perfeitamente levar o interesse do espectador até o fim do filme. Não é à toa que, na parte final, os problemas de Ruth são completamente abandonados em função da existência tematicamente vazia dos irmãos.

Às vezes há esperança, mas às vezes não

Diante desses aspectos, penso que é possível afirmar que Imperdoável é um daqueles filmes que chamamos de “genérico”: encaixa-se numa estrutura narrativa que está mais interessada em impactar o espectador com caracterizações fáceis e pouco desafiadoras intelectualmente, e mais focada em apresentar acontecimentos numa sequência já bastante conhecida da grande maioria das pessoas que assiste e gosta de cinema. Ao fim, temos um desfecho edificante, que faz todo mundo sair aliviado e achando que o mundo ainda tem jeito.

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Com essa estrutura, Imperdoável nada tem a ver com System Crasher. Não é possível de forma alguma reconhecer naquele filme a diretora que nos abalou tão fortemente com o sofrimento – este sim, dilacerante para quem assiste – de uma menina que não sabe expressar amor. Mas, pior de tudo, Imperdoável também não se concilia com o filme que poderia ter sido, ao não reconhecer a legitimidade do sofrimento complexo de uma mulher que por duas décadas não apenas não pôde expressar seu amor – não pôde sequer ter uma vida.

Por outro lado, o que Nora Fingscheidt alcançou em System Crasher é tão relevante, que ainda podemos alimentar a esperança de que a veremos novamente em algum outro projeto de igual envergadura. Quanto a Sandra Bullock… não sei não.


Ficha Técnica
The Unforgivable (2021) – Estados Unidos
Direção: Nora Fingscheidt
Roteiro: Peter Craig, Hillary Seitz, Courtenay Miles
Edição: Stephan Bechinger, Joe Walker
Fotografia: Guillermo Navarro
Design de Produção: Kim Jennings
Trilha Sonora: David Flemming, Hans Zimmer
Elenco: Sandra Bullock, Vincent D’Onofrio, Viola Davis, Jon Bernthal, Aisling Franciosi, Tom Guiry, Will Pullen

 

 

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1 comentário em “Imperdoável

  1. Super concordo! Assisti ao filme ontem e me
    Pareceu q mais uma vez a Bullock escolheu mal onde atuar. Parece a segunda parte de Birdbox ou Gravity q tem pouquíssimas falas interessantes, muita coisa sem explicação e um final sem graça, sem um desfecho claro. Muito ruim.

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