Jardim dos desejos

Última atualização: 30/05/2024

Não sei quanto ao leitor, mas não raro eu assisto a um filme comparando-o com vários outros que na minha cabeça têm algum aspecto que se assemelha ao que estou vendo na tela. Isso aconteceu várias vezes com Jardim dos desejos (2022, mas lançado no Brasil apenas este ano), de Paul Schrader. O diretor também assina o roteiro, como normalmente acontece em seus trabalhos.

Sem dúvida, é inevitável a comparação com o excelente Fé corrompida (2017), o último grande longa de destaque de Schrader. Entre um e outro, ele realizou O contador de cartas (2021), com Oscar Isaac. Entretanto, este passou longe da repercussão que Fé corrompida merecidamente recebeu, junto com seu protagonista que escapa a qualquer narrativa pré-definida e que foi defendido de maneira inesquecível por Ethan Hawke.

jardim dos desejos Maya

Então, naturalmente, a gente ficou esperando o deleite de outro filme provocador de perplexidades. Mas não foi desta vez.

Não que O Jardim dos desejos seja o ponto fora da curva de Schrader. Talvez Fé corrompida é que seja. Em O Jardim dos desejos, novamente testemunhamos a narrativa de redenção de homens brancos estadunidenses, já enquadrada em alguns de seus filmes e roteiros anteriores. Mas isso não é problema. O problema é que a retomada dessa narrativa se acompanha da utilização de estruturas fílmicas esquemáticas, típicas do cinema estadunidense. Até a própria promessa de um refresco temático acaba absorvida por essas estruturas.

Relações escravistas em duas camadas

Esse refresco temático surge no encontro entre Narvel Roth (Joel Edgerton, em composição delicadíssima) e Maya Core (Quintessa Swindell), sobrinha-neta da rica Norma Haverhill (Sigourney Weaver, sempre expressiva), proprietária da plantation sulista transformada em jardim botânico.

Jovem mulher preta que vai estagiar no jardim comandado por Roth, Maya é sistematicamente escorraçada por Norma. A relação entre as duas, assim como a relação entre Maya e Narvel, se ajusta coerentemente às camadas sociais abordadas por Schrader.

Na primeira camada, a das micropolíticas, há o racismo de Norma. Ela mal o disfarça sob uma alegada desconfiança quanto ao passado da moça e de sua mãe, sobrinha dela. Na segunda camada, a das macropolíticas, estão as pré-definições históricas para os estadunidenses pretos – uma vida que ainda hoje reproduz a subalternidade violenta que seus ancestrais enfrentaram.

jardim dos desejos a terra

Schrader desenha essa camada macrossocial usando a metáfora do jardim, descrita por Narvel Roth em off, recurso também presente em Fé corrompida. Metaforicamente, o jardim seria um microcosmo do mundo colonial, com estruturas pré-moldadas e impostas para as pessoas se encaixarem de acordo com suas categorias previamente definidas.

Num dado momento, Nerval pede que os jardineiros cheirem a terra do jardim. Ele espera que eles reconheçam o passado daquela terra, tornada estéril pela monocultura não-sustentável. Então, imageticamente, ali naquele instante, aquelas pessoas tiveram em suas mãos e narinas um resumo dos Estados Unidos escravocratas.

As forças do feminino não se limitam às mulheres

A relação entre Maya e Nerval, mais complexa, se compõe de três camadas, pelo menos. Em termos macropolíticos, ela reproduz a História escravista, em que Nerval assume em princípio o lugar do capataz da senhora da plantation, e Maya, a de empregada e aprendiz. Mas essa relação logo se descompõe, em função de uma camada existencial, a da história pessoal de ambos. Ali, a assimetria desaparece e um se torna o salvador do outro, um a cada vez.

Em termos macropolíticos, essa salvação assume uma dinâmica que já vimos em outros filmes mais recentes. Trata-se do homem branco, o grupo identitário degenerado pela violência que por séculos perpetrou aos outros e a si, resgatado pela mulher preta, o grupo identitário mais violentado pela colonização capitalista e patriarcal.

Noto que esse resgate já foi realizado no Cinema de maneira mais intensa e visceral. Por exemplo, no potente As ondas (2019), Trey Edward Shults o narra ampliando a noção de feminino para ser uma força motriz do mundo capaz de revigorar o masculino criminoso e violento, que destrói a todos, homens e mulheres.

Em comparação com Shults, Schrader realiza esse resgate sempre com o pé no freio, sem mapear o que representa o intercurso diacrônico e sincrônico entre duas pessoas que, para estarem juntas, precisam enfrentar diariamente o estigma histórico que faz delas algoz e oprimido, e ainda no presente continua fazendo em grande medida. Nerval e Maya sabem que a História sempre os atravessará. Respondendo sobre há quanto tempo seu pai preto está na região, ela responde: “duzentos anos”. Contudo, Schrader dedica a esse fato central no filme menos tempo e discurso do que ele merece.

Um triângulo amoroso, em resumo

Mas há outra história também sendo contada em Jardim dos desejos, e também em duas camadas. É a do triângulo amoroso entre Norma, Nerval e Maya, que é, a um só tempo, o dilema entre uma mulher mais velha e uma mais jovem, mas também a necessidade de escolha entre passado e futuro.

Norma é a mulher do tempo da escravidão. Repare-se em seu incômodo de que a sobrinha morta, pessoa tida por ela como inferior, tenha recebido seu nome. Repare-se também em seu desprezo geral pelos seres viventes: nem ao cachorro da casa ela se dá ao trabalho de dar um nome. Quando ele se fere, ela sequer se incomoda em cuidar dele. O relacionamento entre ela e Nerval se mantém no plano do usufruto, com ele ainda trazendo um detalhe especial que desperta em Norma um desejo de outros tempos, tempos em que seu poder como senhora de terras também incluía as vidas de outras pessoas.

Jardim dos desejos Norma

Sigourney Weaver investe no olhar para deixar inequívoca sua composição de uma personagem que incorpora quase mediunicamente seus ancestrais senhores de escravos. A figura que vemos na tela não difere muito dos personagens poderosos de Levantado do Chão, de José Saramago. São todos capitalistas: “O melhor adubo é o dinheiro”, diz Norma. São todos iguais: vidas, vontades e riquezas que se repetem. O tempo, a história e as mudanças do mundo não os afetam. Nesse sentido, o passado de Nerval Roth se conecta a essa figura, e, para conseguir  finalmente viver, ele precisa apagá-la, assim como às marcas físicas que ele mesmo imprimiu ao próprio corpo.

Um balde de água fria em nossa emoção

O futuro vem na forma do terceiro elemento do triângulo, que é Maya Core. Aí a imagem de Nerval elaborada por Edgerton ganha contraste notável. Assim, repare o leitor, no início da projeção, no corte de cabelo e expressão facial do personagem, que já nos adiantam com que tipo de pessoa se está lidando. Evidentemente, a visão desnuda de Roth também se soma a essa impressão. Mas aí, novamente, Schrader encaixa seu filme nos padrões estadunidenses, abrindo a narrativa atual para uma absolutamente desnecessária exposição do passado de Nerval.

Nesse sentido, observe o leitor o desequilíbrio temático que há em Jardim dos desejos. É muito pouco o tempo dedicado a questões relevantes que o próprio Schrader se propôs a abordar. Em contraste, é despendido muito tempo com informações que já podemos inferir a partir da composição de seu protagonista, que traz seu passado em seu corpo, e é com esse corpo que se apresenta por inteiro a Maya. Por isso, ela nem precisa conhecer sua história para saber o que pensar dele.

A escolha entre mudar e não mudar

Igualmente, a oposição entre passado e futuro também está na forma como Norma e Maya enxergam o Nerval Roth do presente. Enquanto sua imagem agrada a Norma, para Maya ele deverá se tornar um corpo diferente. Essa necessidade evidencia que Nerval ainda guarda em si um pouco de seu passado, ou que ainda está à espera da transformação que a necessidade de estar com Maya lhe impõe. Não à toa, o talvez único flashback relevante de Jardim dos desejos lembra que Nerval sempre foi um jardineiro, mas nem sempre arrancou o mesmo tipo de “erva daninha”.

jardim dos desejos erva

Contudo, quando o casal finalmente consegue dialogar de maneira plena, as escolhas imagéticas de Schrader enfraquecem o impacto da experiência do espectador. Ao focalizar apenas seus corpos de raças diferentes, e não também seus rostos e a emoção do momento, Schrader os enquadra em plano médio. Para o espectador, isso é como um balde de água fria em uma cena que poderia bem ser o clímax arrebatador de um conflito central ao filme.

Mas nada me foi tão incomodativo quanto a inclusão de uma situação de tensão que já vi tantas vezes em filmes estadunidenses. A subtrama completamente dispensável me deixou bastante frustrada. De certa forma, essas situações só satisfazem a algum espectador fetichista ansioso por testemunhar do que de fato Roth é capaz, como se isso já não estivesse redundantemente disposto ao longo de todo o filme.

Nem sempre mais é melhor

Em resumo, parece que não havia uma crença na força da história dos personagens e da trama que os envolve. Ou falou mais alto o comprometimento com modelos esquemáticos prévios de narrativa, que obrigam o espectador a assistir de novo a uma história contada da mesma maneira de sempre. Vocês sabem: essas histórias que são tão comuns no Cinema estadunidense.

Pelo menos, há a grata compensação na atuação de Joel Edgerton, que, versátil, está aqui em fluente dinâmica com Sigourney Weaver e bastante diferente de uma de suas melhores atuações, a meu ver, que é em Loving (2016), de Mike Nichols, em inesquecível dupla com Ruth Negga. Apreciei, em particular, sua sutil mudança de olhar e expressão à medida que a vida de Nerval Roth foi ganhando outro rumo.

Mas é de chatear ver de novo um projeto de Cinema que poderia ganhar robustez política e pelo menos arranhar a chaga escravocrata ianque, algo tão imprescindível com o avanço do fascismo redneck capitaneado por Donald Trump. Não é de hoje que temos testemunhado a quase impossibilidade de boa parte do cinema estadunidense de cutucar o Destino Manifesto. Filmes como Jardim dos desejos clamam por mais cineastas estadunidenses que não tenham medo de transformar em ferida narcísica o orgulho brancocêntrico dos Estados Unidos.


Ficha Técnica
Master gardener (2022) – Estados Unidos
Direção: Paul Schrader
Roteiro: Paul Schrader
Edição: Benjamin Rodriguez Jr.
Fotografia: Alexander Dynan
Design de Produção: Ashley Fenton
Trilha Sonora: Devonté Hynes
Elenco: Joel Edgerton, Sigourney Weaver, Quintessa Swindell, Esai Morales

 

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