
Lispectorante
Clarice Lispector já virou lugar comum na educação literária e na cultura brasileira. Os currículos escolares estão repletos de seus livros. Igualmente, a internet oferece fartas referências e materiais sobre a autora, e inúmeros textos lhe são creditados. Se realmente são dela ou não, isso é um mero detalhe. Em princípio, o título “Lispectorante” poderia ser o anúncio de mais uma ode à escritora ucraciana que morou em Recife de 1925 a 1935. Mas não é esse o caso.
Diferentemente das expectativas, em “Lispectorante” a menção à escritora, mais especificamente à casa onde morou na capital pernambucana, é apenas a porta de entrada para o mundo dos sentimentos de Glória Hartman, artista plástica vivida com delicadeza e entrega pela grande dama do Cinema Marcélia Cartaxo. Quem conhece o trabalho de Renata Pinheiro, realizadora dos interessantes “Amor, Plástico e Barulho” e “Carro Rei”, já espera para “Lispectorante” um mergulho na fantasia interior de seus personagens, mas sempre com um pé na “realidade”. Isso os torna mais verossímeis ainda, porque, assim como eles, sonhamos, fantasiamos e visitamos mundos imaginários, porque a vida “real” é dura demais para que não fujamos dela pelo menos uma vez ao dia.
“Lispectorante” mostra uma Recife e um Brasil paradoxais
E é o que acontece com a Glória de Marcélia Cartaxo. Por exemplo, o reflexo do sol numa placa de metal, projetado nas paredes dos prédios de Recife, já é suficiente para provocar nela descolamentos e deslocamentos etéreos e inspiradores. Desse modo, se com pouca coisa Glória já viaja em sua imaginação, imagine-se o que a casa de uma escritora mítica pode provocar em sua mente de artista.
A todo momento, Glória está dividida entre duas realidades. A razão disso é bem evidente. A vida para ela está ficando cada vez mais difícil. Sobre isso, é inevitável estabelecer um paralelo entre “Lispectorante” e “O Que Está Por Vir” (2016), de Mia Hanssen- Love, que também narra as agruras da professora de filosofia Nathalie (a também grande dama Isabelle Huppert) cujas saídas de vida vão paulatinamente se fechando. Porém, diferentemente de Glória, Nathalie não busca em realidades fantásticas uma válvula de escape para os problemas e negativas que se acumulam.
Mas, por sua vez, Glória sonha acordada percorrendo as ruas de uma Recife que não esconde seus paradoxos, que também são os paradoxos do Brasil: beleza e pobreza… Renata Pinheiro exibe sua cidade natal com orgulho por sua história e manifestações culturais, mas também sem medo de revelar ao mundo a precariedade material de suas ruas, e o pouco caso do poder público com sua história. A casa de Clarice Lispector, elemento focal para a construção do mundo onírico de Glória, está quase desabando, completamente abandonada. Pinheiro imagina seu interior como sendo uma larga trincheira de terra, o que, convenhamos, pode não estar longe da realidade.
A vida “real” é o oposto do sonho
Mais amplamente falando, Pinheiro e interessa em descrever o que significa ser uma mulher brasileira artista e pobre. O que leva Glória a morar com sua tia em Recife são os fracassos em sua vida profissional e pessoal. Separada do marido que lhe aplicou um golpe, ela busca trabalho como artista plástica ou qualquer outra atividade onde quer que lhe paguem. O parente que explora sua tia não se furta a fazer o mesmo com ela quando a tia morre. E, como se isso não bastasse, investe contra ela com todo o peso da lei. Pressionada por todos os lados, não resta a Glória, para manter sua saúde mental, fazer nada senão sonhar. Acordada, e dormindo também.
Desse modo, é nos sonhos que surge seu alter-ego, encarnado pela maravilhosa Grace Passô (e é neste momento que abro parênteses para salientar ao leitor o privilégio que é assistir em um só filme duas atrizes esplêndidas como a paraibana Marcélia Cartaxo e a mineira Grace Passô). Também guerreira, mas com outro estilo, a Glória onírica de Passô briga como pode, mas sempre é impedida por enigmas, obstáculos e desinformações que a impedem de sair do lugar. Nada diferente, aliás, do que são os sonhos de todos nós. Neles, sempre há algo emperrado, empacado.
Em “Lispectorante”, realidade e fantasia se misturam
Mas há um componente real e ao mesmo tempo mágico na vida de Glória. Trata-se do artesão de rua vivido pelo pernambucano Pedro Wagner, que lhe oferece a oportunidade de viver momentos de prazer sem a necessidade de escapismos. A conjunção entre o “real” e o imaginário ocorre na cena do primeiro encontro romântico entre os dois, que de imediato sugere que o artesão poderia ser mais um elemento de sua imaginação. Mas, infelizmente, a certeza de que o romance é real acaba acontecendo da pior forma possível. Mais uma tristeza na vida de Glória…
Ao fim e ao cabo, “Lispectorante” não propõe solução para os problemas de Glória e dos personagens que a cercam. Entretanto, ao narrar como a fantasia e o sonho fazem parte de nossa vida e nos ajudam a viver um cotidiano às vezes sofrido, o filme se torna menos fantástico e se transforma em uma narrativa completamente humana. Sem os sonhos, sem os desejos, enfrentar a realidade seria muito mais dura. Seria muito mais complicado viver com lucidez. Em nenhum momento Glória parece deixar de saber quando está acordada e quando está sonhando. Aprendamos com ela.
Ficha Técnica

Direção: Renata Pinheiro
Roteiro: Renata Pinheiro, Sérgio Oliveira
Edição: Quentin Delaroche, Renata Pinheiro
Fotografia: Wilssa Esser
Elenco: Marcélia Cartaxo, Pedro Wagner, Grace Passô, Gheuza, Karina Buhr