Monster
Última atualização: 25/01/2024
A mais recente obra-prima de Hirokazu Kore-Eda (deve ser maravilhoso ser alguém a quem se pode atribuir “a mais recente obra-prima”), “Monster”, não levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2023, ano particularmente feliz para o Cinema. Em seu caminho havia a colossal Sandra Huller e uma Justine Trier particularmente inspirada. Contudo, “Monster” arrebatou com toda a justiça do mundo o prêmio de melhor roteiro para Yuji Sakamoto. Trata-se de uma exceção em se tratando de Kore-Eda, que a rigor roteiriza seus filmes.
Assim como muitos articulistas de cultura, reconheço em Kore-Eda um intelectual interessado nas questões sobre a família como uma esfera civilizatória. Especificamente, a esfera mais imediata da experiência social humana. E, de fato, ninguém filma famílias como ele.
Nesse sentido, observando a trajetória de Kore-Eda, identifico “Assunto de família” (2019) como divisor de águas em seu pensamento. Antes daquele filme, o diretor japonês já vinha defendendo a importância da família como célula central nas sociedades humanas. Entretanto, essa defesa se dava sem grandes rupturas ou problematizações do modelo hegemônico tradicional de família – pai, mãe, filhos biológicos – como eixo e referência.
Entretanto, em “Assunto de família”, Kore-Eda expande o próprio modelo de família. E junta a essa expansão uma crítica severa a julgamentos morais sobre a quem cabe autorizar socialmente os papeis de mãe e de pai. Além disso, “Broker” (2022) segue essa linha aberta, abordando pessoas que se encontram num mesmo espaço à revelia de sua vontade. Esse encontro desperta nelas sentimentos de afeto que reforçam algo já dito em “Assunto de família”. Crescer em um lar, qualquer que seja, faz emergir no ser humano o que ele tem de melhor. Portanto, um lar verdadeiro é fator imprescindível para que sigamos existindo como espécie e como civilização.
A evolução intelectual de um cineasta
Em resumo, essa reunião robusta de obras maravilhosas em torno de uma temática inegavelmente relevante já é suficiente para situar Hirokazu Kore-Eda como um dos mais importantes cineastas japoneses de todos os tempos. E isso não é pouca coisa, como os aficionados em Cinema bem sabem. Por isso, me encanta sobremaneira que em 2023, e aos 61 anos, este artista nos ofereça mais uma expansão de perspectiva e horizonte para a questão que persegue desde priscas eras, agora acoplando a família à esfera sociocultural que lhe é mais imediata: a escola. E o faz com absoluto domínio e entendimento do que constitui os meandros e contradições da relação entre, provavelmente, as duas mais importantes instituições que o ser humano foi capaz de criar.
Evidentemente, esse entendimento se faz com a companhia de Yuji Sakamoto. Este é outro que sabe tudo de família, de escola e de contar uma história extremamente poderosa e destruidora de qualquer ilusão sobre as instituições. Família e escola são sistemas criados aparentemente para garantir que todo ser humano receba e crie laços de afeto, amparo e responsabilidade. São lugares onde deveríamos experimentar um amor que fortalece, mas não raro acabam sendo uma fidedigna evidência da mais miserável e trágica desgraça que o homem fez deste mundo. Ao usar “homem”, não estou generalizando. Digo o homem mesmo, e não a mulher, porque este mundo foi inventado e é perpetuado por homens.
Emoção em grau máximo com sofisticação de conteúdo
E é evidente também que não é possível abordar os temas que são caros a Kore-Eda sem que a realização dessa tarefa não nos atinja visceralmente, como sempre acontece em seus filmes. De forma que já sabemos que, ao entrar no cinema, sairemos dele moídos, dilacerados. Não faz diferença que as situações enquadradas pelo cineasta para dar seu recado se materializem em culturas do outro lado do mundo. Há uma universalidade não apenas em relação ao que motiva a própria existência dessas culturas. São também universais os gigantescos paradoxos formados pela crença, pela vontade e pela necessidade de cabemos em instituições, e, na via contrária, por essas mesmas instituições moldarem muitas de nossas crenças, vontades e necessidades.
Observe aqui o leitor a armadilha, em que aliás muitos cineastas menores caem, de provocar a emoção fácil do espectador para disfarçar a canastrice e a falta de conteúdo de um cinema de segunda, terceira linha. “Monster” se coloca antipodamente a esse cinema, como desenvolvo logo abaixo.
Observe o leitor também que a exploração mal-intencionada e incompetente dos conflitos existentes na relação entre família e escola, algo que é do conhecimento de todos os que vivem em sociedade, também pode levar ao banquete dos fetichistas ávidos por violência explícita sobre pessoas vulneráveis. É contra produtos assim que muitos articulistas preocupados com a dimensão política da Arte, eu entre eles, insistimos em denunciar. Também nesta questão, em “Monster” podemos perceber a preocupação constante do cineasta em proteger seus pequenos personagens, e seus intérpretes também, dos olhos que não são amorosos.
É preciso avaliar a família constantemente
Noto aqui que essa preocupação é um cuidado delicado em um filme que denuncia como, justamente na tenra idade da vida, quando é mais necessário que haja práticas explícitas de amor para que as pessoas se sintam fortes para enfrentar os desafios do mundo, as instituições criadas para esse fim terminam por submetê-las à mais cruel e covarde violência.
Nesse sentido, é absolutamente oportuno o artigo da psicanalista Vera Iaconelli intitulado Por que é tão importante questionar a validade da família , que aponta, entre outras mazelas, como um local que deve ser de amor, proteção e cuidado pode se transformar em calabouço moral de pais e cuidadores ansiosos por caber em modelos sociais de comportamento público. E com a escola servindo de parceira nesse empreendimento nefasto.
Três perspectivas de um mesmo protagonista
Não vou abordar aqui a delicada tessitura fílmica que monta o quebra-cabeça em três perspectivas que chega a preciosismos de filigrana, como por exemplo uma repetição de sons aleatórios nos dois primeiros segmentos que ganham um significado potente no terceiro. Muitos críticos importantes se dedicam a descrever essa estrutura. Nesse pormenor, “Monster” será um daqueles filmes a que muitos reassistem, para que suas referências e amarras internas possam ser capturadas com detalhes.
Reconheço a importância estrutural dessa abordagem em três perspectivas. Mas acredito que ela é um aspecto secundário, ou, melhor dizendo, um alicerce para que Kore-Eda trate de três formas distintas um mesmo personagem desencadeador da narrativa. Este, sim, é o grande protagonista involuntário de “Monster”, que inclusive carrega o infeliz epíteto que dá título ao filme: o pequeno e adorável Yori Hoshikawa (Hinata Hiiragi). Absolutamente todas as ações dos outros personagens giram em torno direta e indiretamente do sofrimento pelo qual Yori Hoshikawa passa.
Um falso Rashomon
A propósito, o destaque central dado à estrutura tripartite de “Monster” gerou a errônea leitura de alguns de que o filme seria uma espécie de “Rashomon” do século 21. Nada poderia estar mais longe da verdade. Há, sim, uma única história sendo contada, com começo, meio e fim. É a história do flagelo de Yori Hoshikawa. E as causas são a negligência criminosa em sua escola, e a homofobia igualmente criminosa de seu pai covarde e violento.
Assim, como único lenitivo, resta o carinho que Yori inspira em um confuso e instável Minato Mugino (Soya Kurokawa), menino de mesma idade e, portanto, sem qualquer aparato conceitual para lidar com as emoções conflitantes e igualmente poderosas que o atacam de todos os lados.
A consolar os meninos, emerge o pessimismo de Kore-Eda para com o que os homens inventaram. Talvez, a única possibilidade de existência de pessoas especiais como eles é longe da sociedade, em isolamento e reclusão intimista. Só assim sua criatividade e sua inteligência podem florescer fora do alcance de um mundo cruel.
A verdade não interessa
O que torna “Monster” o melhor filme a que assisti este ano é justamente essa construção de verdade que brota de caminhos que não estão óbvios. São três perspectivas que escondem um fio narrativo acerca de um protagonista que não aparece logo de início. Mas ele está camuflado sob a angústia de uma mãe que acredita que seu filho apanha na escola. E, também, sob o aparente cinismo de um professor usado como bode expiatório de uma operação sistemática de abafamento de crises. “A verdade é o que menos interessa”, diz a diretora da escola, mentirosa da pior categoria.
Porém, sob o engano que faz os menos avisados identificarem na tela uma outra narrativa, Kore-Eda não está mentindo; não está nos pregando peças. Está, sim, evidenciando a própria realidade histórica que criamos: uma realidade de instituições que desumanizam e invisibilizam para melhor destruir. Yori passa praticamente invisível nos dois primeiros segmentos do filme. É só no fim que reconheceremos sua existência, e, com o auxílio do espelho que ele cola à própria testa, poderemos ver nossa degeneração.
A verdade é o contrário
Essa forma enganadora de contar histórias é inusitada na obra de Kore-Eda, pelo menos entre seus filmes a que assisti. Trata-se do intento de mostrar que a verdade é o contrário. É o contrário tal como o código que os dois meninos criaram para se comunicar através de mensagens aparentemente disléxicas. Essas mensagens são o retrato miniaturizado de “Monster”: no filme, tudo é o contrário também, tudo meio que prestidigita.
Também é contrária a direção de a quem devemos atribuir o nome do título. É claro que ele não se refere à criança cujo pai deveria estar na cadeia, mas sim a nós mesmos. Somos coletivamente responsáveis por cada criança maltratada e morta de tantas maneiras, como acontece muitas vezes a cada dia, a cada hora.
Em “Monster” não há dedos apontando para onde devemos de fato olhar. Não há concessões feitas a padrões narrativos e cognitivos medianos. Me pergunto se isso é uma generosidade de Kore-Eda para nós. Porque a verdade que ele pretende nos mostrar é terrível demais para que possamos aguentar.
Queremos respostas, mas nem sabemos qual é a pergunta
Porém, de certa maneira, a prática de mandar mensagens invertidas já estava ensaiada pelo menos em “Assunto de família” e “Broker”. Neles, fomos desafiados a reconhecer amor incondicional em grupos de pessoas às quais jamais confiaríamos nossos filhos.
No Ocidente, esse desafio está também no magistral “Projeto Flórida” (2018). A ousadia estética e ética da obra de Sean Baker me fez considerá-la o grande filme da segunda década deste século. “Monster”, também fruto da ousadia de um cineasta que, mesmo já consagrado de todas as formas possíveis, escolheu provar-se mais uma vez, candidata-se a ser o meu filme desta década.
De todo modo, mesmo se não for, estará entre outros que, assim como ele, deixarão a ideia mais importante a quem de fato deseja pensar a Arte como uma ação humana que refrata e reconstrói a vida. É a de que precisamos de fato, mais do que respostas para o que não entendemos, é melhorar formas de dizer e tratar das perguntas que realmente interessam. Isso é algo que verdadeiros intelectuais em todas as esferas da vida, entre eles os cineastas intelectuais, se dedicam a fazer.
Direção: Hirokazu Kore-Eda
Roteiro: Yuji Sakamoto
Edição: Hirokazy Kore-Eda
Fotografia: Ryûto Kondô
Design de Produção: Keiko Mitsumatsu
Trilha Sonora: Ryuichi Sakamoto
Elenco: Sakura Ando, Eita Nagayama, Soya Kurokawa, Hinata Hiiragi