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O desconforto inevitável ao ver ‘Não Olhe para Cima’

Última atualização: 28/12/2021

Em primeiro lugar, vamos esclarecer: Não Olhe para Cima não é e nem nunca se propõe a ser “um filme para pessoas inteligentes”. É, assim como um episódio do Choque de Cultura, uma sátira reductio ad absurdum, um extremismo sem nenhuma sutileza. E é dessa forma por escolha do diretor e roteirista Adam McKay, do mesmo modo como feito em Vice, A Grande Aposta e, principalmente, O Âncora. A proposta é, exatamente, usar situações bizarras para chocar e, consequentemente, fazer rir. Ao mesmo tempo em que notamos como a realidade é problemática, claro.

Mas a sátira só funciona quando extrapola o mundo real. Ela precisa nos tirar do dia a dia para, de um lugar seguro, termos a permissão para darmos gostosas gargalhadas da nossa desgraça cotidiana. E, embora “o roteirista do Brasil não está pra brincadeira” já seja quase um bordão nesse país, devemos admitir que anda muito difícil para a ficção competir com a realidade ultimamente. E é por isso que ver Não Olhe para Cima é muito desconfortável: é real demais.

A essa altura, você já viu o filme, leu as críticas e se divertiu com os memes da nova obra da Netflix. Mas, por via das dúvidas, fica o aviso: este artigo contém spoilers.

“Baseado em eventos realmente possíveis”

Há um erro de conceito no “aviso legal” de Não Olhe para Cima. Ao dizer que o filme é “baseado em eventos realmente possíveis”, McKay atesta que, uma vez que a humanidade encare o risco de extermínio, nossos líderes marchariam diretamente para o Apocalipse – e, a bem da verdade, todos nós estaríamos com eles, lado a lado.

O problema nesta afirmação é o seu otimismo. Nós ainda não teríamos encarado tal evento, “apenas” estamos muito mal preparados para ele. Mas, a rigor, nós só podemos nos gabar de não termos asteroides literais rumo à Terra. Em contrapartida, brincamos com a aniquilação do planeta diariamente. Com a mesma habilidade da Presidenta Orlean (Meryl Streep). Com a mesma seriedade da âncora Brie Evantee (Cate Blanchett). Acima de tudo, liderados por mentes brilhantes como a do general Themes (Paul Guilfoyle), nos levando a lugar nenhum e cobrando pelos salgadinhos grátis.

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Eu poderia apontar para o alvo grande, mas vou deixá-lo para depois. “Quem dera” o nosso único problema fosse a pandemia de Covid-19. Desmatamos como nunca, o que já desequilibrou o nosso ciclo de chuvas, tornando a energia mais cara e os alimentos mais escassos. Poluímos os oceanos com tanto plástico que ele já envenena as placentas de nossas mulheres. Nossa existência é tão frágil que morreríamos de fome sem abelhas (e estamos trabalhando duro para eliminá-las).

Nossos asteroides metafóricos já estão em rota de colisão e não estamos fazendo nada para desviá-los. Pelo contrário: assim como em Não Olhe para Cima, não faltam empresários para nos mostrar que a destruição do planeta é uma excelente oportunidade para o progresso.

O mundo me proíbe de rir com Não Olhe para Cima

No terço final do filme, quando o Asteroide Dibiasky está tão próximo da Terra que pode ser visto a olho nu no céu, os cientistas Randall (Leonardo DiCaprio) e Kate (Jennifer Lawrence) dizem o óbvio para os negacionistas: apenas olhe para cima.

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A resposta de Orlean é dizer para seus eleitores não olharem para cima. Algo que seria completamente estapafúrdio, patético e inacreditável se não desse certo. Ideologicamente cegos, os apoiadores da presidenta passam a negar a realidade simplesmente não olhando para ela. Ao mesmo tempo, o diretor do filme sobre o desastre (vou deixar a identidade do cameo oculta, vale a pena) aparece com um bottom apontando para cima e para baixo, representando a “negação à política”.

E se eu disse anteriormente que ia deixar o alvo grande para depois, a hora chegou. Durante uma pandemia que já matou mais de cinco milhões de pessoas (619 mil apenas no Brasil), lidamos diariamente com pessoas que “não acreditam” em vacinas testadas e aprovadas. Que “sabem” que o coronavírus foi “criado em laboratório para eliminar um quarto da população mundial”. Essas pessoas não só se colocam em risco, mas também são uma ameaça a todos nós, permitindo que o vírus circule e crie novas variantes, que eventualmente podem furar a imunização das vacinas.

E se nós, pessoas que analisamos fatos e ciência, nos opomos a isso, estamos “politizando” a questão. Enquanto isso, um presidente que colocou sigilo de um século sobre o próprio cartão de vacinação faz corpo-mole para não vacinar crianças.

Não Olhe para Cima é tão atual que nasce datado

Melancolia é um filme de fim do mundo com a mesma premissa de Não Olhe para Cima. Mas, por ter seus personagens quase em um vácuo de espaço-tempo, é tão fresco quanto era em 2011, quando foi lançado.

Em contraste com Lars von Trier, Adam McKay não fez um “e se”. Seu filme é sobre o agora, sobre a vida seguindo normalmente quando nada está sequer remotamente próximo do normal. Tentando fazer graça da realidade, foi tão realista que dificilmente será entendido daqui a 20 anos. Com o afastamento histórico, as pessoas verão um filme até que meio bobinho.

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Mas hoje, vivendo esses últimos momentos de 2021, não consigo rir com Não Olhe para Cima. O mundo me tirou esse direito quando decidiu ser uma sátira pré-apocalíptica 24 horas por dia.

Não Olhe para Cima está disponível na Netflix.


Ficha Técnica
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Don’t Look Up (2021) – Estados Unidos
Direção: Adam McKay
Roteiro: Adam McKay
Edição: Hank Corwin
Fotografia: Linus Sandgren
Design de Produção: Clayton Hartley
Trilha Sonora: Nicholas Britell
Elenco: Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Meryl Streep, Cate Blanchett, Rob Morgan, Jonah Hill, Mark Rylance, Timothée Chalamet, Ron Perlman

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