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Nazerman e suas prisões ou O Preço da negação | Dossiê Sidney Lumet

Por Diana Pichinine
Última atualização: 22/06/2024

O niilismo estruturante de Sol Nazerman

O Homem do Prego (The Pawnbroker, 1964)

Roteiro: Morton S. Fine, David Friedkin, Edward Lewis Wallant 

Elenco: Rod Steiger, Geraldine Fitzgerald, Brock Peters 

O Homem do Prego (1961) é um romance de Edward Lewis Wallant, adaptado para o cinema por Sidney Lumet três anos depois, com roteiro de Morton S. Fino e David Friedkin. Ambos, o romance e o filme, se inscrevem na tradição das tentativas de representação literária e/ou cinematográfica das figuras do usurário ou do comerciante que trabalha com penhor. Tais personagens quase sempre são apresentados e caracterizados pela mesquinhez e falta de empatia, próprias do tipo de negócio que realizam.

Dessa tradição, num primeiro momento, me vêm à mente duas dessas personagens, compostas em circunstâncias e momentos históricos completamente diversos, mas que guardam entre si o propósito de desnudar a alma do tipo humano/psicológico do indivíduo que coloca o dinheiro e o lucro acima das relações humanas. A primeira é a da velha usurária morta por Raskolnikov em Crime e Castigo (romance de Fiódor Dostoiévski, publicado na revista literária O Mensageiro Russo durante doze edições mensais ao longo do ano de 1866), personagem que embora “dure” pouco tempo na narrativa do romance, empresta-lhe o mote central sem o qual ele não existiria. Sem a culpa pelo assassinato da usurária nada do que dá ânimo ao personagem principal teria tido lugar no romance do autor russo. A segunda é a figura do protagonista de O Cheiro do Ralo (filme de Heitor Dhalia, Brasil, 2007), um sujeito que se sustenta existencialmente pelo gozo de menosprezar e humilhar seus clientes: desempregados, prostitutas, drogaditos etc.

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Nesse sentido, num primeiro momento, o personagem central de O Homem do Prego (espetacularmente interpretado por Rod Steiger que por esse papel recebeu vários prêmios internacionais e uma indicação ao Oscar de melhor ator) nos ofereceria mais do mesmo, apesar do contexto de sua história não guardar absolutamente nenhuma similitude com o daquelas duas outras obras: a primeira, desenvolvendo a trama de um cristão em crise existencial após um assassinato na São Petesburgo czarista do século XIX; e a segunda abordando o cotidiano de um usurário pequeno burguês brasileiro vivendo na capital paulista em plena contemporaneidade neoliberal. É necessário, portanto, logo num primeiro momento, identificar como o personagem central de The Pawnbroker se filia à essa tradição, mas também o que ele traz de novidade a esse perfil.

Uma das virtudes do filme de Sidney Lumet de 1964 é justamente a de conseguir não transformar Sol Nazerman, um sobrevivente do campo de concentração no Holocausto nazista (que testemunha seus dois filhos morrerem e sua esposa ser estuprada por Nazistas antes de ser morta), numa mera vítima da História (aqui escrita propositalmente com H maiúsculo). Como Homem do Prego (título do filme em língua portuguesa), Nazerman compartilha com aqueles dois personagens a sovinice, e a radical falta de empatia. Mas o personagem é construído de modo a não ser visto/interpretado de modo linear. Nem totalmente vítima e nem completamente algoz, Nazerman se revela um personagem com muitas camadas, em cada uma das quais a denegação do sofrimento experimentado, a incapacidade de lidar com ele, e, por via de consequência, seu niilismo estruturante, dão a tônica de seu modus vivendi.

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Nazerman e suas prisões

Imageticamente, O Homem do Prego é um filme que, a todo momento, nos provoca uma sensação de privação de liberdade, um desconforto com a miríade de cercas que criam a ambientação da película. Sidney Lumet tece muitos elogios ao seu diretor de arte (Boris Kaufman) por ter conseguido reproduzir na tela a sensação provocada pela realidade vivida internamente por seu protagonista, um imigrante judeu nos EUA, sobrevivente do campo de concentração na Cracóvia e dono de uma casa de penhor no Harlem. As grades estão presentes em diferentes momentos do filme, e não nos deixam esquecer que Nazerman decidiu viver atrás delas, a começar por aquela, simbólica, construída pela sua recusa à recordação do vivido no campo de concentração.

A vida de Sol Nazerman, mecânica, impensada e inconsciente, nos conduz à diversas dimensões de autoengano que atuam como gaiolas dentro de outras gaiolas. Esse emaranhado de grades é o que protege Nazerman de si mesmo e de seu passado nefasto. Em nenhum momento o filme alivia o público dessa tensão interna, desse auto aprisionamento, desse novelo de lã de Ariadne tecido a fim de ajudar Teseu a fugir do labirinto do Minotauro. Mas no filme não há novelo de lã, não há a figura redentora de Ariadne, e Nazerman definitivamente não guarda semelhanças com o herói Teseu. A ambiência afetiva do filme é grave e tensa. E isso não muda em nenhum momento da narrativa.

O Homem do Prego traz consigo a gravidade do tipo de cinema que nos obriga a refletir sobre as profundezas de um trauma coletivo, tal como foi o holocausto nazista, e suas repercussões subjetivas sobre aqueles que sobreviveram a ele. Muitos foram os filmes que já vimos sobre o holocausto nazista, então, vejamos o que o filme de Sidney Lumet acrescenta de novo às demais narrativas hollywoodianas que tentam retratar esse período histórico.

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A vida como flashback: o pesadelo constante experimentado a conta gotas.

Todo o filme pode ser lido como se passando numa realidade onírica, refúgio de Nazerman, que teve sua mulher, dois filhos e os pais, mortos num campo de concentração na Cracóvia, 25 anos antes do momento em que o filme se passa. Nazerman se recusa à tentativa de elaboração do vivido naquelas circunstâncias, diferentemente do que podemos ver, por exemplo, no relato da mesma vivência feita por Primo Levi em É isso um homem? (romance do químico e escritor publicado pela primeira vez por uma pequena editora em novembro de 1947, mas reconhecido internacionalmente e ganhando uma versão para o inglês apenas quando publicado pela renomada editora Einaudi em 1958).

Ao contrário da denegação, Primo Levi usa sua escrita tanto como estratégia de sobrevivência subjetiva ao que viveu no campo de concentração como uma oportunidade para realizar uma reflexão sobre a condição humana experimentada na radicalidade de sua precariedade, finitude e ameaça permanente de desaparição, como ocorre nas condições impostas por todo e qualquer estado de exceção.

Na dificuldade ou mesmo impossibilidade afetiva de lidar com esse passado estruturante, Nazerman torna-se um niilista que passa seus dias atrás de um outro tipo de cerca, avaliando de modo mesquinho o valor dos objetos trazidos por quem quer que ali chegue, a despeito do valor dos objetos eles mesmos. Como dono de um negócio ele brinca com o pauperismo da clientela que o frequenta, a qual considera como a escória (scum).

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Por exemplo, um intelectual negro, morador do bairro, eventualmente frequenta sua pawnshop apenas para ter com quem dialogar sobre seus interesses por filosofia antiga, sociologia e literatura, já que é sabido nas redondezas que, antes de imigrar para os Estados Unidos, Sol Nazerman havia sido professor na Universidade na Cracóvia.  Em nenhuma dessas circunstâncias o protagonista sequer se dá ao trabalho de olhar o homem nos olhos para ouvi-lo, nem mesmo quando o senhor admite que só vai à loja para ter com quem falar: “A man gets hungry for talk. A good talk!” Nada o comove, nada o dispersa do projeto de se alienar de sua própria história, inabsorvível.

Nazerman é também idolatrado por Jesus Ortiz, um jovem ambicioso porto-riquenho que mora com a mãe e trabalha para Nazerman como assistente de loja. Ortiz se refere a Nazerman como seu “professor”, mas suas tentativas de amizade são rejeitadas. No entanto, eventualmente, após o expediente, Nazerman ensina Ortiz sobre avaliação de metais preciosos e dinheiro, a única coisa que ele ainda valoriza. Ortiz também quer tornar-se um homem de negócios (a business man) como Nazerman e um tio seu que vive em Detroit e mantém uma grocery store por 42 anos, o que, a seu ver, o torna a solid man, kind of a Kingbecause even the cops call him Mister! Ortiz também quer poder tirar sua namorada da prostituição (ela trabalha para Rodriguez, o cafetão que mais adiante bolará um assalto à loja de Nazerman) e, tal como seus “mestres empreendedores”, ser capaz de deixar seu negócio (sua coroa de burguês bem-sucedido) como herança para seus filhos. É importante ressaltar que, do ponto de vista da forma, o filme traz ainda outras novidades cinematográficas. Diminuindo radicalmente o tempo de tela dos flashbacks desse passado, como em conta gotas, Lumet segue brincando com a questão da relação imagem-tempo-memória. O próprio Lumet admite ter realizado, inadvertidamente, inovações imagéticas quando inaugura a proposta de flashbacks tão tiny quanto possível. Em seu livro Making Movies (1996), Lumet  admite ter inaugurado uma técnica que, rapidamente, é absorvida pela indústria cultural dos comerciais televisivos. Pílulas de realidade que vão se ampliando ao longo da película até que o projeto de velocidade da narrativa alcance a inteireza da memória ela mesma. Até que a narrativa alcance o ponto em que Nazerman se desnuda a si mesmo e, por via de consequência, se abra às suas memórias e à atitude inconsciente de manter-se imune à realidade da vida cotidiana.

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As inovações de conteúdo e forma em O Homem do Prego

Algumas observações já conhecidas de qualquer expectador interessado na obra de Sidney Lumet nos anunciam certas novidades trazidas por esse filme: da inovação de ter sido o primeiro filme produzido inteiramente nos Estados Unidos a lidar com o Holocausto do ponto de vista de um sobrevivente até a ter sido a primeira película a receber a aprovação para a exibição da nudez dos seios de duas de suas personagens femininas pelo antigo “Código de Produção Cinematográfico” (mais conhecido como Código Hays, criado pela Motion Picture Producers and Distributors of Americaov (MPPDA) em resposta a preocupações públicas com a moralidade e a influência dos filmes, e que vigorou entre 1930 e 1968), aprovação que representou um dos últimos passos antes de sua revogação, tomamos conhecimento de como Lumet colaborou tanto para a modernização dos costumes como para a construção de um novo modo de narrativa imagética em Hollywood.

Tendo trazido um bocado de sua experiência televisiva para o cinema, Lumet  inaugura elementos que, desde então, foram incorporados pela Nova Hollywood, como é conhecida a fase do novo cinema norte-americano nos anos setenta, a despeito de, à essa época já ter realizado produções como 12 Homens e Uma Sentença (1957) e Longa Jornada Noite Adentro (1962).

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A namorada de Ortiz se oferece sexualmente a Nazerman em troca de dinheiro para começar o negócio de Ortiz/A esposa de Nazerman é violentada pelos guardas do campo de concentração

É difícil localizar a razão pela qual, após esses filmes, Lumet tenha se entregue à questão histórica do holocausto nazista. Mas, a verdade é que sua versão desse momento da história do século XX visa muito menos a um retrato historiográfico do que a uma tentativa de construção de um personagem em aguda crise existencial. Tal como anteriormente em Twelve angry man e, posteriormente, em The Verdict (1982), a Lumet interessa menos a trama policial e mais a raiz existencial das tramas vividas pelos seus personagens. Tudo se passa como se o background histórico fosse somente um pretexto para a elaboração de dramas existenciais e subjetivos muito precisos.

Enfim, afora os lugares comuns levantados pela crítica especializada, em O Homem do Prego, temos diante de nós uma trama que, afetivamente, nos devolve somente desalento e desesperança, o que pode ser confirmado em diferentes momentos da película. Por exemplo, as duas cenas de sexo apresentadas no filme (a que se dá entre seu funcionário, Jesus Ortiz , e sua namorada, e aquela outra entre Sol e a mulher de um amigo morto no campo de concentração, Reuben) marcam a qualidade e intensidade das relações ali mantidas. Do gozo consciente e vivaz de Ortiz e sua namorada excitada e excitante ao som de Quincy Jones à secura do sexo mecânico entre Sol e Tessie, observamos que nada é capaz de retirar Nazerman de sua apatia e morbidade. 

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Miss Birchfield e a tentativa de salvação de Nazerman

A relação de Nazerman com a realidade é restrita ao desejo de manter soterradas as lembranças do vivido que lhe roubou a própria alma. A película começa com Nazerman cochilando no jardim de uma casa no subúrbio novaiorquino de Mt. Vernon no Harlem oriental, pertencente à sua irmã Bertha, que, ao chegar na América, se envolve e se casa com um típico norte-americano.

Durante esse momento de aparente tranquilidade doméstica, momento único no filme por seu caráter lúdico, enquanto sonha com sua mulher e filhos no período anterior à estada no campo de concentração, conhecemos um Nazerman sorridente e esperançoso quanto ao futuro. Ao acordar, Sol é relembrado por sua irmã de que o “aniversário” de vinte e cinco anos de morte da sua família se aproxima. A recordação desse fato atuará como o gatilho disparador de uma crise existencial que acompanhará o protagonista durante todo o filme.  Todo o filme parece ser uma tentativa de manter firme esse expurgo, porque disso depende a falsa tranquilidade que anima seus dias.

Uma personagem que parece ocupar o lugar narrativo de trazer Nazerman de volta à realidade, e, portanto, furar o bloqueio dessa solidão escolhida, desse sofrimento aquiescido, dessa morna inconsciência, é uma assistente social, Miss Birchfield. Suas aparições sempre representam um corte com a narrativa ordinária da película, que insiste em confirmar que a denegação de Sol Nazerman é a única saída possível para que o protagonista possa lidar com o horror pretérito vivido.

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Mas, Sol em nenhum momento se entrega à sedução de, ouvindo-a relatar seu próprio sofrimento e solidão (Miss Birchfield havia perdido o marido para um infarto), admitir seu sofrimento e tentar dar um sentido à sua existência. Perversamente, Nazerman zomba do que a personagem da assistente social entende por sofrimento e solidão e, ao invés de consolá-la ou ao menos reconhecer seu sofrimento, Sol, em suas palavras,  conduz Miss Birchfield a um abismo ainda maior, criado por sua indiferença e perversidade. A ele parece restar apenas o niilismo e o hábito de aquiescer com o nada.

No entanto, a despeito de sua vontade, Nazerman é afetado pela figura de Miss Birchfield. Seja no modo de negar a ela e a si mesmo qualquer possibilidade de redenção, seja buscando-a no momento da narrativa em que, finalmente, se entrega à realidade vivida e à sua condição de homem em sofrimento permanente, Nazerman insiste na frieza da indiferença a fim de seguir seus dias. Pouco se importa com o que as consequências de suas palavras possam produzir na mulher que tenta redimi-lo de si mesmo.

Um momento fundamental do filme se dá quando, voltando da casa de Miss Birchfield, Sol pega o metrô a fim de voltar para sua loja no Harlem. A essa altura ele já não se encontra em condições de manter a farsa que dá o ritmo de sua existência. Numa outra estratégia narrativa visual inédita, Lumet faz Nazerman recordar-se ali mesmo no metrô do vagão de trem que levou ele e sua família ao campo de concentração.

Em dois planos sucessivos de 360 graus somos conduzidos à agonia que anima Sol: finalmente é possível realizar um flashback que lhe dá a reconhecer o extremo sofrimento que experimenta em seu dia a dia. Sem mesuras, a câmera nos conduz a experimentar, junto com Sol, a inteireza de sua miserabilidade existencial. Tudo na narrativa da cena nos conduz a experimentar, com clareza, a impossibilidade de qualquer redenção. Do vagão de metrô ao vagão do trem, Sol assume a gravidade de uma vida sem sentido após o sofrimento da perda de tudo que, anteriormente, permitia que sua vida fizesse sentido. 

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Nazerman se humaniza?

Dando sequência a essa tomada de consciência involuntária, vemos Sol descobrir que seu negócio colabora com a manutenção da máfia local organizada em torno da cafetinagem de mulheres. No afã de começar seu próprio negócio, Ortiz trama junto a seus colegas agenciadores de sexo feminino um assalto ao cofre de Nazerman.

Mas as coisas fogem ao controle de Ortiz, que havia salientado que toparia fazer parte do assalto desde que não fosse usada violência contra seu patrão. Nazerman é brutalmente agredido e, de alguma forma, trazido à realidade de que, há muito, contribuía com a cafetinização de mulheres de baixa renda. Identificar que, involuntariamente, ele promovia em relação a outras mulheres aquilo que sua esposa viveu no campo de concentração retira-lhe o resto de chão que preservava. Ao mesmo tempo, Ortiz é alvejado e morre durante o assalto. Culpa e desespero tomam conta de sua alma.

Daí para adiante não restará nenhum pedaço de chão a Nazerman. Logo após o assalto, ele começa a pagar pelas peças trazidas pela vizinhança empobrecida de um Harlem radicalmente decadente (mas também de toda uma Nova Iorque entregue à pauperização radical nos anos 70) muito mais do que o de costume, para surpresa de seus clientes habituais. Nazerman teria tido um rompante de solidariedade e compaixão? Teria a tomada de consciência iniciada no apartamento da assistente social lhe revelado algo substantivo capaz de mudar sua atitude diante da vida? Estaria Sol pronto para admitir que se refugia num labirinto criado como escudo protetor para a sua dor? Teria Sol se redimido de sua própria consciência? Por sorte, o filme não nos responde e cabe ao expectador imaginar as consequências dessa tomada de consciência:  Nazerman se manterá em denegação ou superará o trauma? Haverá salvação para o niilismo de que se vestiu para manter-se em vida? Nazerman desistirá de viver? Tudo o que temos de concreto é a cena final em que, nas ruas de um Harlem enegrecido e pauperizado, nosso protagonista perambula em direção ao nada.

Encontre os demais textos do Dossiê Sidney Lumet em nosso editorial.

Diana Pichinine é professora, mãe do Francisco e filósofa na horas de ócio. Para mais informações sobre a autora, siga-a nas redes sociais clicando aqui.

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