Trump imagem destacada

Este texto pode conter spoilers sobre “O Aprendiz” (2024), de Ali Abbasi.

“O Aprendiz” é um filme em que tudo é oportuno

Desde novembro de 2024, o mundo todo está mergulhado no assombro e no pânico causados pela eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos. A razão da escolha dos estadunidenses é a mesma que tem guiado milhões de pessoas em muitos países onde líderes de extrema direita são democraticamente catapultados ao poder: o racismo. Contudo, no caso de Trump, esse fato tem uma influência avassaladora, já que decisões tomadas no país mais poderoso do mundo afetam o planeta em larga escala. Já estão afetando, aliás.

Nesse sentido, é oportuna a inclusão, na Plataforma Prime Video, de “O Aprendiz”, bem como a nomeação de Sebastian Stan e Jeremy Strong para os Oscars de ator e ator coadjuvante, respectivamente. Só cresce o interesse das pessoas acerca de como Donald Trump ascendeu na escada da fortuna e do poder, primeiro favorecido por um pai abonado, depois por meio das próprias negociatas.

Ivana

Também é oportuna a escolha do título do filme, que retoma o programa de TV que tornou Trump famoso em todo o mundo, junto com seu bordão “You are fired!”. Só que, no filme, a perspectiva é a do próprio Trump como aprendiz. No caso, tendo como mentor o advogado corrupto e chantagista Roy Cohn (Jeremy Strong, estupendo). Cohn o aceita como cliente e pupilo na arte de fazer negócios driblando o máximo possível a ética, a moral e as leis. E atropelando quem estiver no caminho.

Um recorte perfeito

Nesse sentido, “O Aprendiz” escapa de um problema comum aos filmes biográficos, que é a falta de recorte. Muitos roteiros partem da crença de que precisam dar conta de toda a vida do biografado em duas horas. Nada mais perigoso. Mais felizes são os realizadores que definem um determinado recorte e se dedicam a fazer com que os fatos apresentados sejam atravessados pelo conhecimento sobre o caráter e a personalidade do biografado. É este o caso de “O Aprendiz”.

Mesmo assim, a narrativa é cronologicamente bem marcada. Começa com o momento em que Trump e Cohn se conhecem, e finaliza quando este sai da vida daquele. Nesse meio tempo, um intervalo de pelo menos uma década, o que observamos é dois percursos pessoais em direções diferentes. A descrição desses percursos se presta a uma tese proposta por Abbasi junto com o roteirista Gabriel Sherman. Trata-se de uma ideia que é senso comum na observação das pessoas: o dinheiro e o poder fazem emergir a verdadeira natureza do ser humano. E, de outro lado, a falta deles torna todo mundo bondoso e humilde.

o aprendiz trump e cohn

Nesse contexto, Trump e Cohn se encontram pela primeira vez em condições diferentes. Primeiro, Cohn surge temido, odiado e cheio de poder, portanto arrogante e autoritário, e Trump, ainda em início de carreira, humildemente implorando por um níquel de atenção e apoio do advogado. Uma década depois, quem está coberto de dinheiro e poder, igualmente temido e odiado, é Trump, encontrando um Cohn destruído pela AIDS e sem qualquer apoio em tempos (como sempre) de homofobia escancarada. Digno de compaixão mesmo.

Em “O Aprendiz”, a necessidade da atuação mediúnica

Ali Abbasi nos entrega uma história bem contada com o apoio da gramática e do léxico do cinema.  Os figurinos, a maquiagem e a fotografia granulada de Kasper Tuxen nos fazem penetrar no tempo e no mundo de seu personagem, que é o jovem Trump. Este precisa ser descolado do Trump atual para que possamos acompanhar a leitura de como ele se tornou essa criatura repugnante e bizarra com quem teremos de lidar nos próximos quatro anos, pelo menos. Assim, a criação da atmosfera dos anos setenta/oitenta era fundamental para que pudéssemos fazer esse descolamento. E, com efeito, nessa tarefa Abbasi foi muito bem-sucedido.

Sobre isso, é importante reconhecermos que Abbasi é um ótimo criador de atmosferas. Seus longas anteriores, o estranhamente fofo “Border” (2018) e o angustiante “Holy Spider” (2022), se marcam justamente pelo clima que nos envolve e nos faz produzir sentimentos importantes de crença na verdade dos fatos, para que possamos torcer pelos personagens e temer por seu destino.

o aprendiz Trump e o pai

Para tanto, Abbasi conta com a ajuda imprescindível de Sebastian Stan, que tem feito interessantes escolhas de trabalho. Uma delas lhe deu um prêmio relevante: o de melhor ator no Festival de Berlim em 2024 por “Um Homem Diferente”. No caso de Stan, a ideia de incorporar totalmente o biografado era necessária, mas nessa incorporação o ator abstrai um pouco o ridículo. Por exemplo, Stan investe sem exageros no movimento dos lábios característico do atual presidente estadunidense. Porém, não economiza na obsessiva preocupação de Trump com a imagem, principalmente o cabelo, marca registrada da cafonice que sempre o notabilizou.

Abbasi não poupa ninguém

Ao longo do processo em que Trump ganha poder e dinheiro, revela-se não apenas sua desenfreada ganância. Ficam patentes no filme outras ideias que atravessam os fatos que Abbasi enquadra. De certa forma, essas ideias justificam por que Trump foi eleito duas vezes, e da segunda vez igualmente no colégio eleitoral estadunidense e também no somatório geral. Mas isso não quer dizer que ele deve ser poupado. Pelo contrário.

o aprendiz telefone

Seu discurso é o da ideologia da “America” (leiam a palavra imaginando o “r” retroflexo do inglês estadunidense). A mesma ideia que é vendida pelo soft power ianque e dixie ao mundo. Vendida também aos próprios estadunidenses, sem tirar nem pôr. As falas grotescas de Trump – “Attack, attack!”, em algum momento ele repete – apenas reproduzem o que os próprios estadunidenses acreditam sobre seu país e sobre como ter sucesso ali.

“O Aprendiz” revela o que os estadunidenses desejam

A monstruosidade aberrante do personagem, que vai aos poucos emergindo ao longo do filme – e aí eu preciso capitular e reconhecer que a cena de estupro filmada por Abbasi é absolutamente necessária à sua tese – não é suficiente para fazer com que seus conterrâneos deixem de admirá-lo. Pois ele é aquilo que muitos estadunidenses desejam ser. Muitos desejam ter poderes absolutos, nadar em dinheiro, transar com as mulheres que quiserem, batizar com seus nomes tudo o que construírem. Assim como as crianças que, aprendendo a ler, escrevem seu nome em todo lugar.

O aprendiz Cohn

Seu Doppelgänger Roy Cohn era, de início, o representante dessa espécie de predador capitalista. Porém, ele cometeu o pecado de deixar pública sua condição de homossexual, numa sociedade em que a heterossexualidade explicitada é necessária ao poder. A derrocada de Cohn proporcional e simultânea à ascensão de Trump também favorece a ideia de que, na competição selvagem entre os magnatas, no topo só há lugar para um. Coerentemente a essa ideia, o que Abbasi descreve entre eles é a mesma lógica da narrativa do herói, mas agora aplicada aos canalhas: para que um canalha aprendiz, digamos, “floresça”, é preciso que seu mentor canalha pereça.

O que nos leva a imaginar, na vida real, como vai se desdobrar a circunstância de que, neste momento, no Salão Oval da Casa Branca, há, de fato, dois ocupantes. Até quando? Talvez em breve saibamos.


Ficha Técnica
The Apprentice (2024) – Estados Unidos
Direção: Ali Abbasi
Roteiro: Gabriel Sherman
Edição: Oliver Bugge Coutté
Fotografia: Kasper Tuxen
Design de Produção: Aleksandra Marinkovich
Trilha Sonora: Martin Dirkov
Elenco: Sebastian Stan, Jeremy Strong, Martin Donovan, Maria Bakalova

 

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