O estranho

Quando estudamos o tempo, descobrimos que ele é uma grandeza desdobrável em diferentes dimensões. Desse modo, há, entre muitas outras mais, a dimensão do período da vida do ser humano, medida geralmente em décadas (pelo menos até agora). Há a dimensão histórica, medida não raro em séculos, mas também em milênios. E há a dimensão evolutiva, medida em muitos milhares, ou milhões de anos. Às vezes, elas se ligam a discursos específicos: relatos biográficos, tratados de História, teses de Antropologia, Paleontologia, Arqueologia e Geologia, narrativas míticas e religiosas sobre a origem do mundo e do ser humano. É tanta informação sobre o tempo, que ninguém pensaria que em pouco menos de duas horas poderíamos dar conta de falar da história de um lugar. Mas O estranho dá.

Para isso, Flora Dias e Juruna Mallon optam por contar a história de um lugar específico. Sua decisão torna O estranho um filme muito especial em sua estrutura e significados. Me orgulha que o combalido cinema brasileiro, maltratado pela massiva campanha fascista contra a arte e o conhecimento, ainda consiga produzir peças de Arte como O estranho. Porque, na tela diante de nós, há muito de arte, mas também muito de conhecimento. E um conhecimento sem preconceitos: religião, ciência, saberes empíricos, memórias cotidianas. Tudo com a mesma importância, como ensinou Paulo Freire.

O espaço específico que Dias e Mallon selecionaram é o território ocupado atualmente pelo aeroporto de Guarulhos, São Paulo. Mas também há uma personagem, chamada Alê (Larissa Siqueira, delicada e autêntica), atravessada por diferentes dimensões temporais, e também pelos muitos discursos sobre o tempo que o filme traz para falar da história daquele lugar. É uma coisa de filigrana mesmo, de costura entre tempo e espaço para fazer com que todas os caminhos convirjam para Alê. E tudo dá certo linda e emocionantemente.

O estranho é um filme sobre expulsões

Devo começar falando como O estranho manifesta a dimensão do tempo de uma vida humana. Alê trabalha no despacho de malas no aeroporto de Guarulhos. Por toda a infância e adolescência, morou na exata região onde o aeroporto foi construído. Como consequência dessa construção, a casa de sua família foi desapropriada, e, onde antes havia um bairro, agora há apenas um terreno baldio. Nele, Alê e sua namorada Sílvia (Patrícia Saravy) repetem brincadeiras de infância e recordam o que antes estava construído no lugar onde hoje não há nada.

Sílvia trabalha como depiladora no aeroporto, mas seu salão não deu certo. Por isso, é forçada a se mudar com a filha para outra região de São Paulo, o que certamente ocasionará o fim do relacionamento com Alê. Assim, ambas passam o tempo possível vivendo os últimos dias juntas antes que Sílvia não possa mais ficar em Guarulhos.

O estranho Alê

Além disso, a candombleísta Sílvia também carrega mais uma dor além daquela da separação forçada de Alê. Sem condições de estar sempre presente em seu terreiro, ela terá de deixar de frequentá-lo. O estranho mostra com calma e precisão o tamanho do sofrimento de Sílvia com mais essa expulsão de um lugar de afeto e amor.

Alê também tem uma segunda dor cotidiana. Sua irmã, chamada Isa, desapareceu anos atrás. Isa talvez tenha sido a primeira das expulsões no filme, não propriamente pela construção do aeroporto, mas pela razão que não pode ser excluída em um filme feminino, de estrutura e linguagem feminina. A mesma razão que leva Alê a pedir que Sílvia tome cuidado ao deixar sua casa à noite.

O estranho tem um rio como protagonista

O que revela a nós o interesse de Alê pela dimensão temporal mais ampla acerca do território que hoje é o aeroporto é o delito de abrir uma das malas esquecidas por lá. A mala aparentemente pertence a uma geóloga, e Alê volta a ela mais de uma vez, integrando-se de tal forma aos seus objetos, e, por consequência, à vida de sua dona, que em algum momento escreve suas próprias memórias sobre as anotações de pesquisa em um caderno. Trava com a geóloga uma conversa, talvez imaginária, sobre os sambaquis à margem do rio Baquirivu-Guaçu, antes rico em vida, mas agora esgoto a céu aberto.

Nesse sentido, ao surgir no diálogo entre as duas mulheres, o Baquirivu se torna o personagem que rivaliza com Alê no protagonismo do filme. Esse fato traz para o filme outras formas de discurso, agora ligadas a uma dimensão temporal mais antiga que a história da vida de Alê. É a fala dos habitantes originários do lugar e sua relação com uma natureza elevada ao estatuto de ser vivo, algo que nós ocidentais não somos capazes de compreender.

Assim como Alê, Isa, Sílvia e a geóloga, o Baquirivu também é uma entidade feminina, provedora de vida e cuidado. Ao longo do tempo histórico, testemunha as transformações e o empobrecimento da natureza que a construção do aeroporto de Guarulhos causou. Ampara os habitantes que resistiram à diáspora indígena e se presta como cenário para as crenças vindas junto com quem foi expulso de outras terras e forçado a vir para o Brasil. E, quase morto, ainda assim é capaz de contar sua história e reconhecer seu futuro.

O capitalismo pisa bruto feito pata de elefante

A integração de discursos e dimensões temporais proposta por Dias e Mallon, contada em palavras e imagens, contrasta poderosamente com a acachapante uniformização dos tempos que o aeroporto impõe. Em Guarulhos, só existe o tempo das decolagens e dos pousos. Um tempo que a gente perde ao se atrasar para algum voo. Um tempo morto gasto nos freeshops. Em Guarulhos, o grande estranho, não há existência, nem cultura, nem evolução.

O estranho pedras

Essa ideia me faz lembrar da fala de Pepe Mujica sobre como o capitalismo rouba nosso tempo, transformando-o em força de trabalho usurpada pelo grande capital. O estranho mostra o capitalismo pisando bruto, feito pata de elefante, sobre a diversidade dos tempos que definem a configuração deste planeta. Para que o aeroporto trouxesse o progresso a São Paulo, não se matou apenas um rio e o espaço de vivência das pessoas. Matou-se também o tempo, na medida em que não somos mais nós que definimos quando chegar e partir – e muitas vezes essa própria partida acontece não por nossa vontade, mas pela expulsão que a inviabilização da vida sob o capitalismo impõe.

Sobre O estranho, li que é o produto acabado de dez anos de pesquisa, planejamento, preparação e realização. Portanto, o que vemos na tela equivale à duração de uma formação acadêmica completa: graduação, mestrado e doutorado. Enfim, um trabalho artesanal, como a melhor Arte costuma ser. E valeu a pena o trabalho, que resultou num recorte preciso, mas, a um só tempo, abrangente, dos muitos tempos, lugares de fala e pessoas que constituem o Brasil.


Ficha Técnica
O estranho (2023) – Brasil
Direção: Flora Dias e Juruna Mallon
Roteiro: Flora Dias e Juruna Mallon
Edição: João Marcos de Almeida
Fotografia: Camila Freitas
Elenco: Larissa Siqueira, Rômulo Braga, Patrícia Savary

 

 

 

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