O Evangelho Segundo São Mateus
Última atualização: 31/04/2024
A literalidade de uma obra textual como o Evangelho de Mateus exige não só um valor mítico em sua adaptação, mas também complexidades e virtudes de um homem predestinado à mito. Perpetuando-se de maneira inerte, é quase inevitável escapar de uma perspectiva cinematográfica dogmática, inquestionável em relação aos ensinos de Jesus Cristo. No entanto, O Evangelho Segundo São Mateus, a adaptação de Pier Paolo Pasolini se estabelece sob semântica documental e biográfica. O cineasta ateu, gay e marxista produz o mais complexo e religiosamente bonito filme sobre Cristo.
A Abordagem Cinematográfica de Pasolini
Pasolini opta tecnicamente pela filmagem em preto e branco, se relacionando aos caminhos sinuosos de Luz e Trevas da vida de Cristo. A decupagem é ipsis litteris do livro de Mateus, então os planos acompanham a narrativa clássica do fundador do Cristianismo. Já na chegada dos Três Reis Magos à manjedoura de Jesus, Pier determina sua autoralidade na trilha não-eclesiástica. O jazz/blues expõe esse cenário atemporal e assíncrono, pois a contemporaneidade da história de vida e morte de Cristo serve a várias interpretações.
No cinema já houve quem optou por um musical carregado no blaxploitation, por quem carregou em seu tortune-porn uma abertura para o antissemitismo. O cineasta italiano mistura o mundano ao sacro também, optando pelas missas de Bach ao longo do filme, fazendo com que o poder do longa fique na alçada da imagem de Jesus; seus monólogos e suas ideias em prol de espetacularizar os milagres. Sua raiva emana pelos silêncios e pelos olhares de Enrique Irazoqui, invés pelos rompantes ao descobrir a corrupção dos mercadores no templo de Jerusalém.
O Jesus Revolucionário
O elenco de atores amadores sempre foi uma primazia de Pasolini, já que há nessa escolha um caráter de espontaneidade maior e com fluxo mais orgânico. Mas esse cenário compõe aqui além desse aspecto, é uma interpretação deles mesmos dentro de um jogo, sabido de haver estudo sobre a história, sobre a canonização do filho de Deus não só em mito, mas no fato de existir um conto sobre o homem querendo ajudar o próprio homem. Revolucionário, socialista – por mais que esse rótulo soe maniqueísta ou até mesmo simplista -, a leitura de Mateus costura um ser de ajudar o próximo, pobre de recursos e de alma.
O Legado Humanista e Social de Pasolini
Em Mateus 25:35-40, eis:
Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me;
Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver.
Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber?
E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos?
E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te?
E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.
É nesse aspecto de negociações, leituras e políticas que o Jesus de Pasolini peregrina por trilhas mais humanas e sociais, menos divinas e célebres. É um tratado mais difícil de ler por conta das deturpações ao longo do tempo. Jesus também teria raiva ao ver como usam a casa de seu pai como um espaço de ganância e corrupção.
E a condenação e o julgamento não viriam pela corte divina por mão de seu pai, mas pelos irmãos que são distratados e amargurados pela desigualdade. Da produção O Evangelho Segundo São Mateus, de Pasolini, saiu o Jesus dos pobres, dos nus, dos moradores de rua famintos e sedentos. Por um Jesus que pode ser qualquer pessoa, mundana e diferente à imagem que o próprio catolicismo, por meio de sua instituição terrena, deflagrou ao longo dos séculos.
Direção: Pier Paolo Pasolini
Roteiro: Pier Paolo Pasolini
Edição: Nino Baragli
Fotografia: Tonino Delli Colli
Design de Produção: Luigi Scaccianoce
Trilha Sonora: Luis Bacalov
Elenco: Enrique Irazoqui, Margherita Caruso, Susanna Pasolini, Marcello Morante, Mario Socrate, Settimio Di Porto