‘O Exorcista’: como montar um filme de horror

Última atualização: 14/05/2021

Imagine que você liga a TV em uma quinta-feira chuvosa e encontra um filme chamado O Exorcista passando na Sessão da Tarde. E mais: imagine também que você nunca ouviu falar desse filme, e decide parar para descobrir do que se trata. Pode ser porque você esteve fora da Terra nos últimos anos, pode ser porque você nasceu depois dos anos 2000. Não importa: no meu cenário hipotético, você começa a assistir a O Exorcista por acaso, sem saber que é um filme de horror.

Agora, a minha pergunta é: em que momento você descobre o gênero do filme? Isto é, quando você percebe que não está vendo uma reprise de A Múmia? Qual é a cena que te faz reprovar a escolha de horário da Rede Globo e mandar as crianças saírem da sala? Se fosse para chutar, meu palpite iria nessa aqui:

Algo de errado não está certo

Tenho uma coisinha ou outra para dizer sobre o trecho que você acabou de ver. E, para me ajudar, vou invocar um autor horrivelmente maravilhoso: Noël Carroll.

No livro A Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração, Carroll analisa o conceito do horror. Seria impossível, além de desnecessário, escrever um texto que abarcasse o livro inteiro. Por isso, foco em uma parte minúscula: a definição do horror como um gênero que combina categorias contrapostas.

Cena de O Exorcista com Linda Blair e Ellen Burstyn

Em outras palavras, horrível é tudo aquilo que mistura definições que se opõem, com um resultado que recusa classificações. Por exemplo: as categorias homemlobo não sugerem, isoladamente, um monstro do horror. Mas basta unir as duas para criar um inimigo clássico: o lobisomem, que não pode ser classificado nem como lobo, nem como homem.

E isso pode funcionar com qualquer coisa. Imagine um ser que é metade lagosta, metade bezerro. Ou metade tesoura, metade humano. Ou meio polvo, meio caixinha de som. Tudo isso parece estranho, né? Fundir seres distintos é um bom caminho para construir um monstro.

No livro, Carroll também cita o exemplo da possessão. Na sua análise de O Exorcista, o autor argumenta que Regan nos assusta porque ela também desafia categorias. Ela é, ao mesmo tempo, a menina possuída e o demônio possuidor. Em um só corpo, ela reúne aspectos do reino infantil, relacionados à inocência; e do reino do horror, relacionados ao inferno.

O Exorcista cena de Linda Blair no médico

Até agora, a lógica de Carroll se refere à natureza dos monstros do horror. No entanto, ela pode ser transportada para outras características do gênero. Podemos utilizar essa lógica para falar até mesmo dos aspectos formais das histórias. Comecei esse tópico falando sobre a cena a que você assistiu, e agora revelo o motivo da escolha: a montagem dela também une categorias que se opõem.

O Diabo está nos detalhes (ou na montagem)

As cenas que aponto como marcos de horror em O Exorcista não têm nada de explicitamente assustador. Há uma mãe brincando com a sua filha; e um padre interagindo com um ex-coroinha em uma estação de metrô. Como no exemplo do lobisomem, o problema não está no lobo ou no homem, sozinhos. O horror surge quando os dois são combinados. Para falar a linguagem do cinema, o horror está na montagem. Ou, melhor dizendo, nas cenas em sequência.

A primeira cena, de Regan brincando com sua mãe, poderia pertencer a uma comédia. Já a segunda, do padre e o mendigo, sugere suspense. Quando a montagem costura gêneros tão distintos, o resultado é uma terceira categoria: o horror.

A chegada súbita de um metrô, em alta velocidade e barulhento, marca a interrupção abrupta de uma cena familiar tranquila, que sinaliza o que acontecerá nos capítulos posteriores. Na cena seguinte, o metrô é utilizado de novo, dessa vez dentro do próprio contexto da estação. Em sua segunda aparição, o susto causado pelo barulho do metrô serve para ilustrar o temor e desconfiança do padre. E esses são só dois dos muitos momentos em que O Exorcista utiliza a montagem para assustar.

O que é visto, e por quanto tempo

Uma das curiosidades mais célebres do filme é a aparição repentina de um rosto demoníaco, que acontece aos 45 minutos. Ela dura só um oitavo de segundo, mas, apesar da curta duração, é suficiente para deixar quem assiste com a impressão de que algo errado aconteceu. Aliás, o filme está cheio de cenas desestabilizadoras, algumas mais rápidas, outras mais curtas.

Outro exemplo envolve uma estátua profanada com sangue e chifres. No filme, o caminho que nos leva até essa cena é percorrido por um padre segurando flores. O percurso todo dura 1 minuto e 2 segundos, e se encerra quando o padre finalmente vê a estátua. Que, então, fica em tela por apenas três segundos.

Cena do filme O Exorcista

A curta duração se explica porque, em regra, não há nada mais assustador que nossa imaginação. Isso se relaciona com a definição de Carroll do horror como algo que foge de definições: nada é mais difícil de definir do que aquilo que só existe dentro da nossa cabeça. É por isso que monstros não costumam ser descritos exaustivamente. Geralmente, as definições aludem mais aos efeitos que eles causam (o monstro era repulsivo) que às suas características (o monstro tinha um rosto feito de meleca).

No cinema, isso se traduz em: mostrar ou não mostrar, eis a questão.

O que não é visto

É provável que, quando você assista a O Exorcista, você preste mais atenção em tudo que é mostrado: vômitos de sangue, vômitos de gosma verde, cabeças que giram, corpos que se deterioram, crucifixos que… Bom. Muita coisa acontece. Quando pensamos em monstros que não são vistos, pensamos mais em A Bruxa de Blair que em Linda Blair.

Linda Blair flutuando no filme

No entanto, o que vale a pena notar é que, mesmo em um filme como O Exorcista, que é bem explícito, também está presente um horror sutil, que é só sugerido. O Exorcista foi um dos filmes que definiu o gênero do horror como o conhecemos hoje, então nem preciso dizer que isso é comum; o horror não está só no que é mostrado.

Entretanto, com frequência o horror só é encontrado quando está explícito. Por exemplo: a lógica de Carroll, do horror como a união de categorias que não deveriam caminhar juntas, se aplica de forma mais evidente aos monstros. Mas que outros recursos os filmes do gênero costumam unir para criar esse mesmo efeito? Em O Exorcista, a montagem é um bom exemplo. E te garanto que, se você procurar, pode encontrar outros casos (te indico o caminho da sonoplastia, que ainda será assunto de algum texto). A pergunta que fica é: você está preparado para o que pode encontrar?

 


Ficha Técnica
The Exorcist (1973) – Estados Unidos
Direção: William Friedkin
Roteiro: William Peter Blatty
Edição: Norman Gay & Evan A. Lottman
Fotografia: Owen Roizman
Design de Produção: Bill Malley
Trilha Sonora: Robert Garrett & Eugene Marks
Elenco: Ellen Burstyn, Max von Sydow, Lee J. Cobb, Linda Blair, Jason Miller, William O’Malley

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